Costa abafa Sócrates e vira à esquerda

Separar os sentimentos da política. O mantra de António Costa para o Congresso conseguiu controlar os socialistas, depois de ter arrumado o assunto José Sócrates logo no início do seu discurso e sem nunca o nomear.

Nem Renato Sampaio, um dos mais próximos amigos do ex-primeiro-ministro falou no caso quando subiu ao palco. A consagração do líder do PS serviu para fazer uma viragem à esquerda, tanto nas palavras como através do sinal dado com a equipa escolhida para a direcção. 

“Quero felicitar os socialistas pela forma exemplar que têm sabido enfrentar uma prova para que nunca ninguém está preparado, um choque que para todos nós é brutal”. Não foi preciso dizer o nome para todos saberem do que Costa falava. “Todos temos sabido separar os sentimentos da política, mostrar a fibra de que se faz um partido como o PS, uma fibra que, contra ventos e marés, acreditam e não resvalam na confiança num Estado de Direito e nos seus ideais”. E assim arrumou o assunto. 

Um atrás do outro, os socialistas seguiam religiosamente as indicações de Costa – que enviou um SMS aos militantes logo após a detenção de Sócrates a pedir contenção – e não tocavam no assunto proibido. Mas o fantasma estava lá e nos corredores não se falava de outra coisa. A ex-ministra da Cultura do Governo de Sócrates, Gabriela Canavilhas, foi das poucas a arriscar, apesar de, mesmo assim, não o nomear: “Peço uma saudação para os ausentes, que gostariam de estar presentes e não estão”. Renato Sampaio, André Figueiredo e Isabel Santos, três dos mais fiéis socialistas a Sócrates, quiseram dar um sinal e fizeram uma pausa nos trabalhos do Congresso para ir a Évora visitar o ex-primeiro-ministro. Os sentimentos, afinal, estiveram sempre lá. 

Com o assunto Sócrates arrumado logo no início do discurso, António Costa não perdeu tempo e transformou o Congresso numa viragem à esquerda do partido que sonha com a maioria absoluta. A contestação ao Governo e a afirmação de uma política alternativa ocuparam grande parte do discurso de abertura. “Mudança”, diziam os ecrãs do Congresso. Enquanto que o discurso de encerramento ficou marcado pela recusa de alianças à direita, com Pedro Passos Coelho ou com Rui Rio, por um claro piscar de olho à esquerda, referindo-se ao Livre de Rui Tavares, e um discurso marcadamente ideológico, com ataques aos bancos, resistência às políticas de austeridade da Europa ou a liberdade de escolha no tipo de família. “Confiança”, estava escrito. 

No encerramento do XX Congresso, Costa rejeitou o Bloco Central, comparando-o a um “pântano”, uma situação em que é “tudo farinha do mesmo saco” o que serve  para “alimentar não a democracia mas os extremismos”. E desfez equívocos: “Não é um problema de nomes. O meu filho chama-se Pedro, é um nome de que eu gosto. Não é uma questão de ser Pedro ou ser Rui”. A escolha de nomes não pareceu inocente. Pedro Passos Coelho ou Rui Rio, aquele que tem sido apontado como um possível sucessor do actual líder do PSD e próximo de Costa.

A rejeição da direita levou também a um recado para PCP e BE, partidos de “protesto” que não querem fazer parte da “solução”, ao referir o Livre como o único que “procura romper o bloqueio da incomunicabilidade à esquerda”. Rui Tavares estava na plateia. 

Um dos discursos mais marcantes foi o de Manuel Alegre, que abria caminho para a viragem à esquerda: “A razão principal porque apoio Costa é porque, tal como há 40 anos Mário Soares, saberá preservar a autonomia estratégica, resistir aos cantos de sereia. Não permitirá que o PS se transforme numa muleta da direita ou mesmo no terceiro partido da direita”. O líder parlamentar, Ferro Rodrigues, alinhava no discurso contra a austeridade do Governo, enquanto os deputados Sérgio Sousa Pinto e Pedro Nuno Santos fizeram um discurso de retorno às raízes socialistas do PS. “Nunca fez tanto sentido ser socialista como faz hoje”, resumiu Pedro Nuno Santos. 

A direcção escolhida por António Costa já deixava antever a viragem à esquerda. No Secretariado, o núcleo duro político, são quase todos estreantes e saltam à vista nomes da ala esquerda, como João Galamba e Sérgio Sousa Pinto. Da ala socrática ficou o ex-chefe de gabinete de José Sócrates, Luís Patrão, que será o secretário ‘principal’. O SOL sabe que o convite a Luís Patrão foi feito antes da detenção de Sócrates. Os seguristas viram as suas ambições frustradas e foram afastados do Secretariado. 

Simbólico foi o bater de porta daquele que tem defendido uma aliança do PS com o PSD. Francisco Assis não percebeu porque se inscreveu para falar ao início da manhã e só falaria depois de jantar. Acabou por sair do Congresso sem falar, chateado. 

O tema das presidenciais ganhou mais destaque depois de Sampaio da Nóvoa ter sido aplaudido de pé pelos socialistas. E Costa admitiu que o próximo candidato presidencial do PS pode sair “das fileiras do PS ou da área política do PS”.  Se António Guterres não avançar, Sampaio da Nóvoa parte bem posicionado. Para Costa, terá que ser "um Presidente da República que renove o orgulho que todos tivemos nas presidenciais exemplares de Mário Soares e Jorge Sampaio". Ambos marcaram presença no Congresso, o que não tem sido habitual nos anteriores. Um sinal de união e de confiança em António Costa para liderar os socialistas no caminho “exigente” até às eleições, nas palavras de Sampaio. Um caminho trilhado à esquerda. 

sonia.cerdeira@sol.pt