É difícil, se não impossível, reproduzir o impacto de um cartoon por palavras. Mas tentemos o exercício: nos anos 90, um dos cartões-de-visita do Brasil em Paris era o número de prostitutos travestis que então deambulavam por certas ruas da capital francesa. Ao sabor do seu mais puro estilo, uma revista satírica gaulesa chamada La Grosse Bertha fazia uma capa que ficaria na retina e iria motivar imensos processos judiciais – aproveitando a visita do então Papa João Paulo II ao Brasil, o cartunista desenhou um travesti a sodomizar sua santidade em pleno aeroporto, à chegada.
Impressionado? Sem dúvida, mas só um leitor não-francês. Por aquelas terras em que se fez uma revolução logo no século XVIII, as caricaturas de padres e outros elementos religiosos já eram velhas de três séculos. Uma das primeiras, nota a New York Review of Books, representa clérigos a passarem por uma ‘máquina de emagrecimento’ dos revolucionários, uma tenebrosa roldana que faz lembrar uma máquina de picar carne. Era uma alusão ao peso ganho pelos padres na exacta proporção da miséria do povo.
«É conveniente termos em linha de conta que a matriz da sociedade francesa não é idêntica à nossa», nota o cartunista António Antunes, que há anos colabora com o semanário Expresso, assinando simplesmente com o primeiro nome. «A sociedade francesa é claramente anticlerical, é a pátria dos jacobinos, tem essa atitude de há muito tempo a esta parte». Sublinhando que a sua atitude perante o modo como pretende criticar através do traço é substancialmente diferente desta tradição, António nota que os colegas franceses «têm uma leitura abrangente do cartoon e uma atitude muito menos subserviente em relação às igrejas do que nós». Por cá, o peso religioso ainda se sente, embora possa ser considerado peso-pluma tendo em conta o que se passava ainda há poucos anos: «Nós fomos criados num regime que tinha como grande apoiante a Igreja Católica e os franceses são, de alguma forma, netos da Revolução. Portanto, são dois pontos de partida completamente diferentes».
Prova do ‘respeitinho’ nacional foram os problemas sentidos por António quando publicou O Preservativo Papal, em que João Paulo II é apresentado com um preservativo no nariz, inspirado na interdição da Igreja ao uso deste contraceptivo. A audácia valeu-lhe ser confrontado com milhares de assinaturas contra a obra.
Voltando a polémicas gaulesas, quem diz Igreja, diz Islão. Já todos sabemos, pelo ritmo noticioso das últimas semanas, que o histórico semanário satírico Charlie Hebdo vinha coleccionando problemas com representantes da comunidade muçulmana francesa, que conta umas estimadas cinco milhões de almas. Mas as outras religiões também expressavam repúdio por algumas das imagens nas célebres capas da publicação. Nada que se compare ao atentado que tirou a vida a 12 pessoas, incluindo cinco dos seus principais cartunistas, a começar pelo director, Charb (Stéphane Charbonnier), passando por históricos da caricatura e da BD como Wolinski, Cabu (Jean Cabut), Tignous (Bernard Velhac) e Honoré.
O que sempre esteve em causa, dizia Charb a propósito dos vários problemas que a publicação teve ao longo dos anos que a dirigiu (sucedendo a Philippe Val, com quem relançara o semanário em 1991, ao fim de dez anos de interregno por falta de leitores), era um combate a dogmas e fanatismos dos mais diversos quadrantes, da política à religião. O ponto de vista sempre foi o da esquerda libertária do Maio de 1968 – na sequência do qual surgiram várias publicações satíricas –, anticolonial, anticapitalista e profundamente enraizada no ateísmo. O choque com as religiões era garantido.
Charb confirmava isso mesmo, depois de o Charlie Hebdo ter-se lançado numa campanha feroz contra o integrismo islâmico em 2005, em solidariedade com o jornal dinamarquês Jyllands-Posten, que tinha publicado uma controversa caricatura de Maomé, algo interdito pela cartilha dos muçulmanos radicais. «Vi os desenhos e fez-se imenso barulho por pouca coisa», dizia o malogrado director. «Em França, e falo pelo Charlie, publicámos representações do profeta muito mais chocantes do que foi publicado na Dinamarca. Uma vez, uma associação muçulmana minoritária e discreta processou o Charlie porque um desenho representava o profeta. Foram à justiça e perderam». E recordava-se de outros choques judiciais: «Tivemos antes problemas com a extrema-direita católica. Terminavam normalmente à barra do tribunal, perdiam e era tudo».
As palavras não antecipavam o que aí vinha. O cartunista só tem um caminho a seguir, nota Augusto Cid, cuja longa carreira percorreu boa parte da imprensa portuguesa (incluindo o Sol), o do seu ADN. E não foi imune a pressões e até a proibições – livros que se centravam na figura do ex-presidente Ramalho Eanes, como O Superman e Eanito, el Estático e o Tarzan foram apreendidos judicialmente, já depois do 25 de Abril. Comentando o massacre do Charlie Hebdo, Cid considera: «Eles reagiram assim porque estavam a ser ameaçados e, se calhar, de cada vez que subiam o tom da crítica, eram mais ameaçados. É uma resposta natural, está no ADN de um cartunista – se desenha, tem de continuar a ser cada vez mais duro, se não vai para casa e não faz mais nada».
Logo após a solidariedade expressa por Charb e companhia no Charlie, as organizações que procuram o ajuste de contas na Justiça já se contam por várias: a Grande Mesquita de Paris, a União das Organizações Islâmicas de França e a Liga Islâmica Mundial batem-se contra o apoio aos dinamarqueses e contra uma capa de Carbu, muito divulgada esta semana após o massacre, em que Maomé se queixa de que «é duro ser-se amado por estúpidos».
A redacção passa a ser uma caixa-forte, defendida pela polícia à porta. Uma ironia, se pensarmos na tradição soixante-huitard do Charlie, contra os militares e… a Polícia. Na sequência de outra provocação – mais uma capa com Maomé numa edição rebaptizada ‘Charia (a lei islâmica) Hebdo’ – o jornal sofre o seu primeiro atentado, à bomba, em 2011. Dos escombros e da nova sede, a resposta foi ainda mais dura, como seria de prever.
Até ao desfecho trágico desta equipa, o Charlie faz parte de um conjunto amplo na imprensa francesa, que herda a tradição iconoclasta já referida. Só para mencionar outro exemplo, mas de carácter um pouco diferente, o Canard Enchaîné faz 100 anos em 2015, mas com uma linha de reportagens de investigação e denúncia, além dos (sempre eles) cartoons insurrectos.
Essa tradição na imprensa é ampliada com o Maio de 68. Este Charlie vem, como já se disse, dos anos 90, após um interregno de dez anos que se sucederam à primeira série. A versão inicial, por sua vez, surge a partir de um problema grave. O seu antecessor, a revista Hara-Kiri, tinha outra linha gráfica nas capas mas não esquecia o humor corrosivo e directo, auto-intitulando-se, em subtítulo, ‘jornal estúpido e mau’, inspirado pela carta de um leitor enfurecido. Fora fundada em 1960 por outros dois nomes cruciais deste meio, François Cavanna e Georges Bernier e saiu como publicação mensal até ao fim de 1985. Pelo meio, a dupla criou a versão semanal, não sem que a mensal tivesse tido duas ordens de suspensão, nos anos 60, devido a capas de choque.
E é exactamente a Hara-Kiri Hebdo, semanal, que vai dar origem ao Charlie depois de uma capa polémica, que muitos já conhecem. Em alusão a um incêndio numa discoteca, a Hara-Kiri fez uma capa em que troçava de Charles de Gaulle – Presidente francês durante dez anos e líder do movimento da resistência durante a II Guerra – após a sua morte. Estávamos em 1970, e, perante a suspensão, a direcção mudou o nome para Charlie (em ‘homenagem’ a De Gaulle, segundo dizia Wolinski) Hebdo. A primeira edição recuperou a capa anterior da Hara-Kiri.
Na década que se seguiu e praticamente nos 20 anos seguintes, os cartunistas franceses multiplicaram-se em trabalho e em publicações. Algumas, como a já citada La Grosse Bertha – fundada em reacção à primeira guerra do Golfo, em 1991, e que terminaria um ano depois – seguia a mesma linha de denúncia política, religiosa e de pendor fortemente antimilitarista.
‘Preferia cortar os tomates’
Outras, como a Siné Mensuel, nasceram de cisões no Charlie. O episódio é mais uma peça na colecção de polémicas da publicação. Em 2008, Maurice Sinet (o Siné que dá o nome à outra publicação) fez um artigo e cartoons dedicados ao casamento de Jean Sarkozy, filho do então Presidente francês, com Jessica Sebaoun-Darty, herdeira do império Darty, de telecomunicações. O tom do artigo levou a que Siné fosse acusado de anti-semitismo. Philippe Val, então director do Charlie, pediu-lhe que escrevesse um pedido de desculpas. Mas o cartunista seguiu o bom velho espírito do jornal. Disse ao seu director que «preferia cortar os tomates». Foi então despedido, não sem ter recebido ameaças de morte da Liga de Defesa Judaica, uma organização de extrema-direita sediada em Nova Iorque.
Siné ganhou o processo contra o Charlie e 40 mil euros de indemnização. Foi um dos episódios negros da história da publicação, que sempre se caracterizara por veicular opiniões divergentes sobre temas polémicos.
Tudo isto acabou superado em gravidade pelo massacre do dia 7. Ainda assim, o Charlie foi para as bancas anteontem, com muita ajuda técnica e financeira, três milhões de exemplares e mais uma capa com Maomé, desta vez choroso, a empunhar um cartaz da campanha de solidariedade em torno do semanário, com a frase ‘Je Suis Charlie’.
Para Cid, há um aspecto intrigante no caso. É que o ofício é solitário e por isso «os cartunistas quase não aparecem nas redacções e quando o fazem é só para cumprimentar os amigos». Por isso, é estranho que a dupla terrorista soubesse precisamente o dia da reunião de redacção, quando quase todo o corpo editorial está presente. «Foi, com certeza, porque alguém do jornal os avisou».
Mas será que os cartunistas vão ceder perante o trauma? Como vão ficar no futuro, tendo de tratar um tema tão sensível como o Islão? «Isto pode intimidar alguns no futuro, mas vai encorajar outros», acredita António. «Acho que há uma crispação que vai passar para a sociedade francesa» e o discurso da extrema-direita vai «endurecer». Mas, continua António, «a esquerda também tem alguma culpa nos silêncios que fez no meio disto tudo». A sociedade europeia «está doente», não favorece o desenvolvimento e bem-estar dos cidadãos e isso «potencia o aparecimento destes movimentos», com cidadãos que tentam encontrar respostas num qualquer provável Paraíso celeste. «Prefiro que as coisas sejam resolvidas na Terra e não no Céu», conclui António.
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