Do desaparecimento do local de culto à morte do pároco, subtraídos da vida pela força da chuva, o rosário fúnebre conserva o ritmo torrencial de descarga das águas. «Dezassete óbitos. Só aqui foram 17. Dezassete óbitos», remói o morador, ainda a digerir o balanço de perdas humanas, processadas sem tempo para abrandar o sustento.
Afinal, percebe-se pelo ver se te avias dos sobreviventes, acompanhado pelo SOL no passado fim-de-semana, que a urgência das necessidades não permite sequer uma pausa para enxugar as lágrimas.
«Perdemos praticamente todos os bens materiais. O que sobrou foram estas roupas, que conseguimos agarrar porque ficaram a boiar», interpõe Sabina Falcão, embrenhada numa missão comunitária que se adivinha interminável: a recuperação. «A água cobriu a nossa casa e a correnteza era tão forte que naquele momento só pensava: morri, não há salvação».
No auge da tragédia, galgada sobre um colchão convertido em bote salva-vidas, Sabina agradece a trégua dos céus. «Graças a Deus não houve energia».
A falta de luz, que na noite de quarta-feira 11 e na madrugada de dia 12 travou um vendaval de descargas eléctricas de efeitos inimagináveis, junta-se agora a um pesado cúmulo de necessidades quotidianas.
Sociedade civil exige investigação
Num desafio constante à existência humana, encravada numa paisagem de casebres construídos na fronteira para derrocadas, a falta de cuidados básicos de higiene antecipa novas pragas, potenciadas entre lixeiras e águas paradas.
Descalço sobre um charco que, mesmo atravancado de entulho, serve de recurso para soltar camadas de lama da sua já cansada companheira de duas rodas, Francisco Samutaka enfrenta o risco para conservar os rendimentos de kupapata.
A rotina insalubre, executada numa cadência de gestos mecânicos que transformam as águas em oficina de lavagem, intercala-se com desabafos dramáticos: «Há uma família em que morreram todos. Pai, mãe, filhos».
Os relatos da desgraça, despejados pelo moto-taxista de forma caótica, prolongam-se nas ruínas de vida que flutuam sobre as águas paradas. Entre os rastos de morte jaz, órfão de par, um sapato feminino de tom vermelho-sangue, enquanto nacos de mobiliário se empilham com carcaças de electrodomésticos, louças sanitárias e sucatas automóveis.
Num impressivo cemitério de construções reduzidas a pedras e lama, todos os sentidos parecem condenados a cobrir-se de luto. «Não podemos tirar a culpa à natureza, como é óbvio, porque choveu muito e houve vento. Mas também é evidente que esta calamidade expõe a falta de atenção pública às políticas sociais, nomeadamente de habitação», defende José Patrocínio, coordenador da ONG Omunga.
À espera de um encontro com a administração local, para articular acções de apoio à população, o activista lamenta que a sociedade civil permaneça arredada da intervenção pública. Pior ainda, acusa Patrocínio, «é constatar que as vítimas nem sequer estão a ser envolvidas».
O líder da Omunga interroga, numa mensagem divulgada já depois do encontro com o SOL: o que está por detrás da catástrofe do Lobito? «É verdade que naqueles dias vimos algumas zonas inundadas, mas como resultado das águas que desceram dos morros. Será que teria chovido mais aí do que na zona baixa [da cidade]? De onde veio aquela água toda, e com tanta força para conseguir arrastar carros e contentores?».
Em busca de respostas, a Omunga exige a constituição de uma comissão de peritos para investigar os acontecimentos que empurraram pelo menos 70 vidas para a morte.
250 homens nas buscas
Num território irremediavelmente abatido pela tragédia, o corrupio de carros, motos e peões confirma a mórbida e clássica atracção popular pela desgraça. «Eu levo-vos lá. Venham atrás de mim».
A sinuosa subida do morro concretiza-se sob a direcção de Ferreira Baptista que, de visita aos bairros da catástrofe – para ver de perto os estragos das chuvas que desabaram sobre o Lobito -, se oferece para guiar a reportagem.
Curioso consumado e jornalista adiado – «faltou-me o dinheiro para a faculdade», conta -, o administrativo de 27 anos direcciona-nos para uma ravina com uma vista privilegiada da catástrofe.
Lá em baixo, a uma distância fatalmente vertiginosa, uma amálgama de materiais de construção torna o caminho intransitável, ao mesmo tempo que atrai dezenas de olhares de comiseração.
Com a fé em forma de bíblias debaixo do braço, Juliana Afonso transporta a mensagem que, desde a confirmação da tragédia, mobiliza populações de todo o país. «Estamos orando e vamos ajudar a angariar roupas e bens alimentares», prega esta professora da instrução primária, que perdeu dois alunos, de oito e 10 anos, para as enxurradas. «Ainda por cima eram irmãos. Daquela família em que morreram seis».
As contas da fatalidade, demasiado negras para grandes pausas de consternação, agravam-se na voz do mais velho Polassa.
«A pedra bateu no corpo do moço. Não havia maneira. A corrente atravessou estas casas todas até lá em baixo. Fomos apanhar cadáveres no Campo do Buraco», relata o homem que, na indicação de outro morador, acompanhou tudo desde o primeiro minuto.
«Saí de casa com a chuva», confirma Polassa, de volta à noite em que, à imagem de um bombeiro, garante ter andado numa extenuante missão de socorro, em parceria com outros elementos da comunidade. «Recolhemos 32 cadáveres», precisa o salvador improvável, numa descrição desajustada dos relatórios oficiais.
«A maior parte dos corpos foram recuperados pelos serviços. Começámos logo às primeiras horas a recolhê-los e a levá-los para a morgue, num trabalho conjunto com o piquete da Polícia», garante ao SOL José Horácio da Silva, comandante provincial do Serviço Nacional de Protecção Civil e Bombeiros.
Desde a infância marcado pela chuva, vilã noutra tragédia lobitanga de dimensões semelhantes, aí de 1972, o responsável desmente a ideia de uma resposta tardia ou ineficaz. «Mobilizámos 250 homens para esta campanha e estamos em acção deste o primeiro instante. Mas às vezes a população fala por emoção», sublinha o comandante, no momento destas palavras às voltas com uma maratona de diligências para reassentar as populações desabrigadas.
Acampamento para 120 famílias
Além da montagem de tendas, preparadas para acolher 120 famílias – a distribuir entre terrenos da Catumbela e do Lobito -, a resposta das autoridades passa pela recuperação de edifícios, nomeadamente escolas, e pela construção de novas habitações.
«Este acampamento vai ter por função o assentamento provisório, por um período não superior a quatro meses. Por isso, as famílias vão receber imediatamente o seu lote de terreno para iniciarem uma construção definitiva», calendariza o governador de Benguela, Isaac dos Anjos.
Numa visita de campo que percorreu vários focos de enxurrada, e passou revista às condições de realojamento da população, o governante assumiu a responsabilidade do poder político na tragédia, sem contudo deixar de apontar o dedo noutras direcções. «A culpa é nossa, enquanto administração, mas também é dos cidadãos, que querem melhorias nas condições de vida junto dos centros urbanos, sem pagar por isso», critica, lembrando a dificuldade que existe em cobrar impostos.
Ainda assim, Isaac dos Anjos assume a «falência do sistema administrativo e operacional e a falta de manutenção e limpeza dos canais», num diagnóstico de encargos partilhados apresentado no domingo, 15.
Num percurso mapeado pelos administradores municipais do Lobito e da Catumbela, respectivamente Amaro Ricardo e Filomena Pascoal, e apoiado por uma equipa de directores provinciais – nomeadamente da Saúde, Educação e Urbanismo -, o governador de Benguela tornou-se o alvo de uma avalanche de gritos de revolta.
«Se chover vai morrer mais gente aqui», projecta uma voz masculina, que engrossa um ruidoso coro de protestos, transformado na banda sonora da passagem da comitiva provincial e municipal pelo Bairro Liro.
Por aqui, num depósito de lixo a céu aberto, a emergência de um reordenamento urbano – pronunciado por uma encosta de casas empoleiradas além dos limites da natureza – disputa preocupações com uma ameaça de saúde pública: a cólera, que espreita sob os charcos, inconscientemente ocupados por brincadeiras infantis aquáticas.
«Vai morrer mais gente aqui», repete o mau prenúncio, apenas silenciado pelas súplicas de tecto que, noutro ponto do Lobito, pelos labirintos do Bairro Novo, Bela Vista e Acongo, cercam a reportagem.
Adelina, Nito, Arnaldo, Gaudêncio, Domingos… todos imploram por um espaço no nosso bloco de notas, vorazmente cobiçado. Como se a própria existência, por agora desabrigada de um tecto, pudesse ser salva pelas páginas de um jornal.