Ouvi dizer que se cruzou com o Rui Costa.
Sim. O meu pai era fã do Eusébio e cresci a ouvir falar do Benfica. Gosto das camisolas vermelhas.
Não esteve para ser jogador de futebol?
O meu plano, quando era adolescente, era esse. Estreei-me no campeonato norueguês no Molde, que é a equipa da minha terra. Parei depois de romper os ligamentos dos dois joelhos.
Era mesmo bom?
A cada ano que passa lembram-se de mim como um jogador cada vez melhor. Acho que ia acontecer o que acontece à maioria dos jogadores – têm um pico de sucesso mas depois nunca vivem à altura do que prometiam.
Agora prefere escalada?
É uma coisa que descobri recentemente, nos últimos cinco anos. É um desafio pessoal, em que é preciso lidar com a dor física mas também é preciso superar o medo. Ninguém está confortável tão acima do chão.
Tem a ver com o desafio da escrita?
É o oposto e é por isso que gosto. Ser músico e ter uma banda também faz parte desse equilíbrio. Ficar sentado a escrever é um trabalho introvertido. Ninguém aplaude quando se chega a uma boa frase. É bom, mas também é bom mais tarde pegar na guitarra e ir até um bar tocar com os amigos à frente de um público. É uma combinação perfeita. Ainda melhor se juntar a escalada, onde é impossível pensar noutra coisa além do sítio onde te estás a agarrar.
É uma forma de tirar férias do protagonista Harry Hole?
O mundo dele é muito negro. Não posso passar demasiado tempo naquele sítio escuro.
Podia ter seguido outra carreira.
Construímos histórias sobre as nossas vidas para dar sentido às coisas. Há dias em que percebo que é tudo caos e coincidências, mas há outros em que até consigo encontrar um padrão. Aí sinto que sempre estive destinado a ser escritor. A minha mãe era bibliotecária, o meu pai tinha a casa cheia de livros e quando escrevi o meu primeiro livro, aos 37 anos, senti que era mesmo aquilo.
A sério?
É treta, claro. Mas se calhar faz algum sentido. Quando gravei o primeiro CD e disse aos meus amigos de infância que o ia editar, ficaram incrédulos. Quando escrevi o primeiro livro, liguei a esses amigos à espera de ter a mesma reacção, mas disseram: 'Sempre soubemos que o ias fazer'.
Este livro foi o primeiro com Harry Hole. Lembra-se como chegou até ele?
Nem por isso. Não me sentei a planeá-lo. Ele foi ganhando vida durante a escrita, tinha só algumas ideias. Na verdade, acho que nem consigo imaginar bem a cara dele. É mais como alguém que se vê pelo canto do olho.
Como aqueles amigos que já não vemos há muito tempo?
É isso mesmo. Temos uma sensação sobre o aspecto mas não conseguimos reproduzir o rosto com precisão. Só reconhecemos se passarmos por ele na rua. É o que aconteceria com o Harry.
A acção passa-se na Austrália. Estava lá ou imaginou?
Fui lá para conhecer o país, para passear, mas uma rapariga de uma editora tinha-me pedido pouco antes para escrever um livro sobre a minha banda. Disse-lhe que isso não ia acontecer mas que talvez escrevesse outra coisa. Voltei com um policial.
Escreveu tudo lá?
Quando se conta muitas vezes a história já não dá para separar o mito da verdade. Mas tenho quase a certeza que o escrevi lá, em cinco semanas. Editei um pouco já em casa, mandei para a editora e não pensei mais nisso. Estava a contar que me pedissem para melhorar ou para escrever outra coisa e só aí é que me ia sentar para escrever um livro a sério. Mas depois ligaram-me a dizer que queriam publicar. Entretanto já tinha começado a gostar do conceito do policial, daquele jogo em que as duas partes sabem as regras. O meu trabalho é manipular e enganar o leitor de uma maneira justa.
Mas apesar do jogo, os leitores querem sempre ser surpreendidos. Isso não complica tudo?
Complica muito, mas imagino sempre que os meus leitores são tão inteligentes como eu e a única coisa que tenho de fazer é surpreender-me também. Às vezes tenho uma ideia e penso: não estava à espera disto, será que posso fazer? É como quando se está a tocar um instrumento – às vezes faz-se um erro mas acaba por fazer sentido. É um momento de caos que faz a diferença na organização. O elemento de surpresa num policial também é assim. A surpresa não pode provocar um 'o quê?' mas sim um 'ah, pois é'. O leitor já tem de estar muito perto da solução. Se a reacção for 'ah, que óbvio', falhámos. E se for 'como assim?' também falhámos.
Prefere fazer isso na Austrália ou na Noruega?
Quando Ray Bradbury descreve Marte tem uma enorme liberdade, pode criar a paisagem. Em Oslo não tenho essa liberdade mas consigo ir de forma mais eficiente até ao coração da história, não tenho de construir tudo à volta. Neste caso, escrever sobre a Austrália não tem a ver com a Austrália mas sim com o Harry enquanto estrangeiro. É um homem que está habituado a ser um outsider em casa e por isso sente-se bem naquele papel. No segundo livro Harry vai até Calcutá, o que para um norueguês é quase como ir a Marte. Só no terceiro é que vem para Oslo e foi só aí que se estabeleceu o universo que o tornou conhecido.
Sente-se uma estrela pop do policial?
Na Noruega também sou uma estrela da música. Lá perguntam-me muito se me sinto mais relevante, como músico ou como escritor, mas a altura em que fui mesmo uma estrela foi quando tinha 17 anos e jogava futebol. Joguei o meu primeiro jogo para a equipa principal e de repente toda a gente na rua queria falar comigo. Desde então tem sido um percurso descendente.