Por isso, falamos de um doce singular, genuíno e específico, cujo sabor nos remete para características organolépticas que não se descrevem, apenas se sentem. É esta a qualidade dos produtos únicos. Saboreamos com gosto e não sabemos porquê. Encontramos aquele sabor ali e não noutra coisa qualquer. Será das sardinhas? Será dos amigos que nos dão a conhecer as sardinhas? Será do ambiente medieval que se encontra em Trancoso, onde as pedras respiram história e onde as figuras ali nascidas nos bradam as suas particularidades? Não sabemos, provavelmente, será tudo isso, e nada disso. Se calhar, são só as sardinhas que são deliciosas e que nos impelem a repeti-las sempre que há oportunidade.
É a certeza acerca da genuinidade e originalidade deste suculento doce que levou ao aparecimento da Confraria das Sardinhas Doces de Trancoso. Esta associação cultural sem fins lucrativos, leva, desde 2010, mais longe o nome de Trancoso e das suas sardinhas, dando a conhecê-las ao público que se vai cruzando com esta doçaria singular. De capa castanha, onde sobressai a romeira de amarelo intenso, os confrades desta Confraria distinguem-se facilmente entre os demais, sendo os grandes responsáveis por uma divulgação massiva das sardinhas doces. Perante a perplexidade, explicam sempre com o mesmo cuidado e desvelo a história e cultura associada àquele doce, aproveitando o ensejo para explicar um pouco mais da cidade de Trancoso. O melhor mesmo é ir lá e conhecer esta cidade, cujo centro histórico atravessa a história de Portugal e relata na primeira pessoa muitos episódios que importam para a relevância do país enquanto território independente.
Em Trancoso, foram realizadas as bodas do rei D. Dinis e de D. Isabel de Aragão, figura maior e mais tarde baptizada como rainha Santa Isabel. Foi este território do planalto o escolhido como digno para os esponsais de um dos mais importantes reis de Portugal. Também é de referir que Trancoso é a terra de Gonçalo Annes Bandarra, sapateiro de profissão que ficou imortalizado na história nacional pelas suas profecias potenciadoras do mito sebastianista e da importância do país no destino do mundo. Apesar da censura, as trovas de Bandarra sobreviveram ao digladiar da controversa acção da Inquisição e influíram o pensamento de ilustres nomes da literatura nacional como Padre António Vieira e Fernando Pessoa. Mais do que a profecia, seria porventura a convicção da grandeza de Portugal que fez com que o texto de Bandarra sobrevivesse à censura. Apesar da conturbada relação com o Santo Ofício, Gonçalo Annes Bandarra encontra-se sepultado na igreja de São Pedro de Trancoso.
Com uma história que antecede a nacionalidade, Trancoso sobreviveu ao tempo pela acção dos que lá foram nascendo e vivendo, sendo de ressalvar a fortaleza que cerca o centro histórico e que foi o elo de defesa de ataques dos mouros, de guerras ligadas à independência nacional, de investidas das tropas napoleónicas. O pano de muralhas que circunda o centro da cidade foi reforçado por D. Dinis com sete torres amuralhadas que conferem à cidade um tom medieval. A Torre de Menagem distingue-se pela sua configuração em forma de pirâmide truncada e possui uma janela árabe com arco de volta de ferradura. Pelas suas características e importância na história, o castelo e o pano de muralhas foram classificados como Monumento Nacional na data de 8 de Junho de 1921.
A Confraria das Sardinhas Doces, a par da divulgação da importância e da riqueza de Trancoso, tem contribuído para um melhor conhecimento do percurso histórico das sardinhas doces, procurando desenvolver iniciativas promotoras da elevação da gastronomia trancosense. Assim, têm sido vários os momentos culturais promovidos por esta instituição para a valorização da gastronomia local, com particular destaque para o doce que dá nome à confraria. Diz a tradição oral, que a receita das sardinhas doces deriva do convento de Santa Clara de Trancoso sendo que, à semelhança de muitas outras receitas conventuais, sobreviveu à extinção das ordens religiosas e encerramento dos conventos e mosteiros passando, num primeiro tempo, para as casas abastadas e, mais tarde, para as famílias locais. Nesta escalada do tempo em que por sorte as receitas não se perdem, importa ressalvar as gerações de doceiras que com as suas mãos laboriosas e dedicadas souberam transpor para o futuro a singularidade de uma receita antiga. Importa ressalvar ainda o saber-fazer necessário para que esta receita nunca perdesse o que a caracteriza.
Trancoso, a par do património arquitectónico e histórico, exibe um importante património doceiro que nos mostra, sobretudo, a alma criativa de um povo que soube criar no planalto, entre montanhas, um doce a lembrar as sardinhas pescadas no litoral. As de Trancoso têm a cobri-las chocolate em vez de sal, e em vez de saberem a mar sabem a uma saborosa mistura de açúcar, ovos e amêndoa. Inesquecível o sabor, obrigam sempre a voltar a Trancoso nem que seja pelos amigos que lá vivem e defendem este doce como uma parte da sua alma.
*Presidente das Confrarias Gastronómicas Portuguesas