Maria Barroso

Há umas semanas escrevi um texto sobre ela. Maria Barroso ligou-me. Combinámos um encontro, um abraço. O encontro aconteceu. E fiz-lhe uma entrevista.

Do texto, do que me falou, era qualquer coisa como isto…

Maria Barroso esteve ao lado de Mário Soares no dia em que o fundador do PS fez 90 anos. Ocupou o seu lugar de sempre – o mesmo onde esteve durante o Estado Novo, no combate pela democracia e nas campanhas políticas que levaram o marido a São Bento ou Belém. Não foi notícia, limitou-se a ser a de sempre; a que pensou pela sua cabeça, a mulher com uma luz própria, convicções inabaláveis e uma paciência infinita. Ou um amor infinito, o que neste caso vai dar ao mesmo.

Soares é a maior figura da história da democracia. Mas Maria Barroso conseguiu algo de igualmente extraordinário: manteve uma luz-própria quando a que tinha ao seu lado fundia todas as outras apenas com a sua incandescência. Nunca foi subserviente, pensou pela sua cabeça e tentou que toda a gente à volta fizesse o mesmo. Influenciou homens e mulheres que com ela criaram vínculos independentes das lealdades ao marido; votou contra Soares nos dias da fundação do Partido Socialista; aproximou-se da Igreja Católica nos anos a seguir ao desastre do filho João em Angola; como Primeira-Dama defendeu temas que irritaram o Presidente e pai dos seus filhos, o da defesa do princípio da família foi uma das suas marcas.

Representou, declamou como poucas figuras, foi a única mulher a discursar no Congresso de Aveiro, presidiu à Cruz Vermelha e dirigiu o início da ascensão do Colégio Moderno ao top dos colégios de elite em Portugal. Uma direcção que, a partir de determinada altura, foi dividida com a filha Isabel, talvez a maior de todas as influências do casal Soares.

Esteve ao lado do marido no dia de aniversário, uma não-notícia sendo-a na verdade. Há momentos em que a actualidade é menos importante do que tudo aquilo que existe para lá da espuma dos dias, um fio indefinível que cola as coisas e as transforma em História. Ela é a própria ideia de liberdade, pelo menos da maneira como a vejo e defendo – a liberdade não é o que nos apetece fazer em cada momento, mas aquilo que estamos disponíveis para abdicar em nome de um bem comum. Sem que isso nos faça perder o pé ao que somos, ao que é, ao que sempre foi.

Mário Soares não poderia ser o que conhecemos sem ela. E o mesmo se aplicaria se a equação fosse feita ao contrário. Um e o outro são faces da mesma moeda, uma não existe sem a outra. E hoje, por tudo isto, não quero perder a oportunidade de a celebrar, de celebrar o que em Maria Barroso é silêncio, o poder do silêncio e de uma superioridade moral que a faz ser especial e única. Uma grande senhora.

Que a si própria ofereceu uma ideia, a ideia de que era e valia por si. Podemos seguir-lhe o exemplo e fazer o mesmo. A ideia de que somos, de que existimos, únicos e especiais, se o quisermos. Mesmo que não façamos nada aos olhos dos outros, o que fizermos aos nossos passará a ter a força de uma convicção. Um combate pela autonomia, pelo sentido da vida, pela procura da felicidade, pela tolerância. E com uma imensa luz própria. Que ao apagar-se terá o efeito de um gigantesco apagão. Um apagão que perdurará na memória colectiva.