Ainda são os cinzeiros com o símbolo do Grupo Espírito Santo (GES) que enfeitam as mesas da casa cor-de-rosa na São Bernardo. Mas as rotinas já não são o que eram. Oito pessoas trabalham ali diariamente, com a missão de vender o máximo de activos do ramo não-financeiro do GES, pela melhor proposta possível. Tudo para que os credores possam recuperar pelo menos uma parte do dinheiro que perderam. Desses oito, só dois são da família Espírito Santo: Caetano Beirão da Veiga e Sara Beirão da Veiga. Caetano nunca tinha trabalhado para a família. Entrou para a Espírito Santo International (ESI), a convite de Manuel Fernando Espírito Santo, na fase em que já tinha começado a debandada da holding maldita do GES. Diz quem com ele trabalha que se vestiu de um espírito de missão. Habituado a viver das suas empresas e de modestos rendimentos, costuma comentar: “Estava habituado a lidar com euros, agora tenho de lidar com milhões”.
A antiga casa de infância de Ricardo Salgado e José Maria Ricciardi esteve à venda por 3,5 milhões de euros, mas já deixou de estar. As acções e as unidades de participação que a Rioforte detém na Herdade da Comporta também já estiveram à venda, mas o processo também ficou suspenso.
O Tribunal do Luxemburgo dá ordem de venda, o Ministério Público português responde com ordem de arresto. É como se tudo estivesse destinado a ficar à deriva. São activos minados, que não conseguem crédito e com quem os fornecedores já nada querem. O dinheiro proveniente de tudo o que foi vendido até à data foi depositado numa conta que só o Tribunal do Luxemburgo pode movimentar, mas esse tudo é ainda muito pouco: Espírito Santo Saúde, Espírito Santo Viagens, e pouco mais. Durante o processo é preciso garantir que o investidor é legítimo, fazendo uma prova de fundos. Dois antigos funcionários da ESI já foram apanhados a posicionar-se para comprar activos. Ricardo Salgado, pelo menos em seu nome, e ao contrário de todas as suspeitas, não apareceu até à data como potencial comprador.
Na família, mesmo os que eram primos tão próximos que pareciam irmãos de sangue, deixaram de o ser. Logo após a queda, sucederam-se episódios em que administradores e funcionários não conseguiam começar reuniões sem confirmar se o antigo líder do BES não viria. Hoje, já poucos são os que se querem aproximar de Ricardo Salgado. Com ele chegaram ao topo, e por ele caíram. Apesar disso, é José Maria Ricciardi quem continua a ser o mais odiado do clã. Ninguém na família lhe perdoa ter iniciado uma guerra com o primo que acabaria por destruir o império. “Será sempre visto como um Judas”, diz uma fonte próxima. De entre os que estavam no topo, no órgão da cúpula, José Maria já só fala com o pai, António Ricciardi – a quem, ainda assim, não deixa de imputar responsabilidades. Em todos os outros deixou de confiar.
E se Ricciardi não se coíbe de ir a eventos públicos, como o lançamento do livro do ex-ministro Miguel Relvas, Salgado passou os últimos meses numa espécie de redoma. Depois de umas semanas no hotel Palácio, mudou-se com a sua equipa para um condomínio do lado oposto do Casino Estoril. A discrição era tal que por lá muitos nunca deram por ele. “O Ricardo Salgado, o da televisão?”, pergunta uma vizinha. Ricardo Salgado já não é conhecido como o homem do BES. Olhando para a metáfora que usou no Parlamento sobre a pele do leopardo, deve ser isso que acontece a um homem quando perde a reputação: de ilustre banqueiro a estrela de TV.
Até ser obrigado a permanecer em casa, na passada semana, por ordem do juiz Carlos Alexandre, Salgado passou semanas a fio a trabalhar nesse condomínio ao lado de dois assessores, Rita Marques Guedes [que antes trabalhou para a Ongoing] e os advogados Francisco Proença de Carvalho e Adriano Squilacce, do escritório Uría Menéndez – Proença de Carvalho. Não desiste enquanto não provar a tese de que “o BES não desapareceu, foi forçado a desaparecer” – por decisão do primeiro-ministro e do governador do Banco de Portugal.
Costumava ir almoçar a casa ou fazê-lo nas redondezas do Casino, sozinho ou acompanhado por alguns dos seus colaboradores. Na verdade, nunca estava só: andava sempre acompanhado por dois seguranças. A história de que teria sido expulso de um restaurante do Guincho – o Panorama –, depois de alguns clientes terem começado a bater com os talheres na loiça, não passou de um boato. Na verdade, Salgado nem sequer era cliente daquele restaurante. Costumava sim frequentar outro espaço em frente – o Porto de Santa Maria – que chegou a ser do mesmo dono. Ali os pratos são relativamente mais caros.
Se isto é um primo
Os primos desavindos nunca mais se reaproximaram. Ricciardi é aliás o único membro da família que Salgado tem desdenhado publicamente. Desde que Ricciardi deixou de comparecer nas reuniões do Conselho Superior do GES, em Junho de 2014, por recusar sentar-se na mesma mesa que Ricardo Salgado, os primos só se voltaram a cruzar uma única vez, num restaurante à hora do almoço, quando Ricciardi voltava de uma caçada. Ambos fingiram não saber quem o outro era.
José Manuel Espírito Santo, o antigo líder do Banque Privée, na Suíça, e aquele que era o familiar mais próximo de Ricardo Salgado, é o mais destroçado da família. Aproveitou a queda do grupo para concretizar a reforma que há muito adiava. Vive cabisbaixo, incapaz de se perdoar por ter confiado cegamente em Ricardo Salgado e por não ter medido os riscos por trás dos documentos que assinava. O suficiente para enfrentar já uma acusação do Banco de Portugal. No período do Verão que antecedeu a queda oficial do GES não parava de ligar para a equipa que ficou a cuidar de dois ‘cancros’: a dívida da ESI e a dívida da Rioforte. Dizia em sofrimento que era preciso reembolsar o senhor ‘xis’ porque estava velhinho, ou pagar ao senhor ‘ípsilon’ porque tinha perdido as poupanças de uma vida inteira. A resposta que ouvia era sempre a mesma: “Com que dinheiro?”.
Ninguém como ele teve de lidar com tantos clientes desesperados. “Ele tinha o cargo de presidente do Banque Privée, mas era um comercial. Um tipo que andava por aí a captar clientes”. Foi pelas suas mãos, aliás, que chegaram ao banco e ao grupo alguns dos seus melhores clientes. No Novo Banco é praticamente impossível encontrar ainda hoje quem com ele não simpatize. Era um dos deles, e além do mais um cavalheiro. Quando chegavam às reuniões, Salgado nunca estava para perder tempo: “Ora vamos lá começar”. José Manuel Espírito Santo virava-se para as senhoras e perguntava: “Estão bem? Querem chá? Café?” O Líder do ramo mais numeroso da família continua a defender, com unhas e dentes, que todos devem ter orgulho no nome Espírito Santo. Agarra-se à fé e diz que 120 anos de história não se apagam assim. Foi o único membro do Conselho Superior a pedir desculpas a todos os accionistas e clientes pelo que aconteceu no BES e no GES. “É meu dever dizê-lo”.
José Manuel continua a ir à antiga sede do GES pontualmente, para assinar papéis enquanto membro de conselhos de administração de umas empresas. O mesmo acontece com Manuel Fernando Espírito Santo, antigo chairman da Rioforte. Nos entretantos, Manuel Fernando até já foi protagonista de um momento de humor: numa das buscas à casa, os investigadores encontraram no seu gabinete uma cópia da famosa carta em que os cinco principais representantes da família justificam os cinco milhões de euros recebidos via ESCOM no negócio dos submarinos. À pergunta “podemos tirar uma cópia?”, Manuel Fernando respondeu: “Poder, podem, mas isso já está tudo no YouTube”. O membro da família Espírito Santo referia-se à reunião do Conselho Superior do GES (órgão que reunia os cinco principais ramos do clã), de 7 de Novembro de 2013, divulgada pelo i e mais tarde reproduzida pela TVI. Os pormenores da discussão em que cinco membros da família confessam ter recebido, em 2004, cerca de um milhão de euros cada um no negócio dos submarinos – apesar de não terem tido nenhuma intervenção no negócio – acabariam por saltar para o canal de vídeos mais famoso do mundo. Mas não a carta em si.
António Ricciardi, mais conhecido por “comandante” ou “chuca” [por ser assim que em criança pronunciava a palavra ‘açúcar’], continua a manter o ritual: tira sempre pelo menos duas horas diárias para ir da sua casa em Cascais à rua de São Bernardo. “Temos a sensação de que se um dia não o deixarmos entrar ele morre à porta”, conta um dos responsáveis pela liquidação dos activos do GES. Do núcleo duro do antigo Conselho Superior, é o único que tem escapado a processos judiciais e contraordenacionais em Portugal. Comenta-se que a idade tem servido como atenuante. Isto apesar de aos 96 anos continuar a subir escadas pelo seu pé, a falar sem dificuldades e a ler jornais sem precisar de óculos. No imaginário familiar, já se consegue olhar para Salgado como alguém capaz de cometer crimes. Ninguém é capaz de pensar o mesmo sobre o decano dos Espírito Santo.
Pedro Mosqueira do Amaral, que conquistou direito de voto no Conselho Superior apenas depois da morte do pai, Mário Mosqueira do Amaral, em Março de 2014, foi um dos membros da família que se esfumou. Diz quem por ali trabalha que muitos se têm esforçado por não aparecer, na esperança de serem esquecidos. Desde a última reunião do Conselho Superior do GES, a 30 de Julho de 2014, no primeiro andar da casa cor-de-rosa, que poucos voltaram a ver Pedro Amaral ao vivo e a cores. Continuará a viver na Alemanha e a trabalhar para uma empresa que ficou integrava no banco bom – o Novo Banco. André Amaral, que trabalhava no Crédit Suisse, e a quem são reconhecidas boas capacidades de gestão, ainda foi convidado para se juntar ao grupo nas vésperas do fatídico 3 de Agosto de 2014. Mas acabou por não ficar.
Ricardo Abecassis, o primo do Brasil, também não tem dado notícias. Ao contrário de Pedro Mosqueira do Amaral, não chegou a ser ouvido na Comissão de Inquérito ao caso BES/GES. Apesar de se ter mostrado disponível, nem sequer teve de responder por escrito, a partir de São Paulo, onde continua a viver, e a dedicar-se aos negócios. O segundo protagonista da família que mais enfrentou Ricardo Salgado (depois de José Maria Ricciardi) demitiu-se do cargo de presidente do Espírito Santo Investment Bank Brasil, depois de saber que o Banco de Portugal lhe iria retirar a idoneidade devido ao período em que esteve na administração do Banco Espírito Santo Angola (BESA). Ainda todos se espantam por Ricciardi ser o único que permanece idóneo perante o olhar do supervisor bancário. Continuou a desempenhar funções de topo no BESI mesmo depois da venda do banco de investimento à chinesa Haitong. Diz fonte próxima que nos locais públicos, frequentados pelos mais ilustres, ainda sente que precisam de respirar fundo antes de o cumprimentarem.
Contabilista está desempregado
José Castella, controller financeiro do GES, foi constituído arguido nas investigações do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) ao universo Espírito Santo conduzidas pelo procurador José Ranito. Continua a responder na casa da rua de São Bernardo pelos “serviços de controlo”.
E o que é feito do famoso contabilista que foi à Comissão Parlamentar de Inquérito denunciar que Salgado lhe sugeriu que fugisse para um país sem acordo de extradição com Portugal? Depois de pedir uma audição à porta fechada na Assembleia da República, Francisco Machado da Cruz voltou a remeter-se ao silêncio. Diz que assim será até os processos estarem terminados. De acordo com informações recolhidas pela Tabu, estará desempregado e divide-se em viagens entre Portugal e a Suíça, onde vive uma filha. Pediu uma indemnização pelos anos em que trabalhou no GES, com o argumento de que se demitiu a pedido de Ricardo Salgado, mas a saída do grupo acabou por não ser acompanhada de qualquer compensação monetária. Saiu em Abril de 2014 e não voltou a receber um cêntimo do GES. Ao contrário do que chegou a ser avançado por alguns órgãos de informação, não foi até à data constituído arguido em Portugal.
Sobre outras figuras mais ou menos conhecidas do banco e do grupo, há sempre histórias a circular pelos corredores da casa cor-de-rosa e do Novo Banco. Quase todas acompanhadas de muitos zeros. Há uns tantos sobre os quais toda a gente comenta: “Esse está multimilionário”; “Esse tem não sei quantas casas”. A versão que corre é de que quem trabalhava por Angola ou por Miami, com grandes clientes venezuelanos, ou era muito próximo de Ricardo Salgado, foi devidamente compensado financeiramente.
No extremo oposto, há os nomes mais sonantes da família que estarão endividados, depois dos sucessivos créditos contraídos para conseguirem aderir aos sucessivos aumentos de capital do banco. Há até quem, como Manuel Fernando Espírito Santo, tenha dado a casa como garantia. Por um lado, Salgado pressionava, dizendo-lhes que teriam de dar o exemplo. Por outro, tinham todos a esperança de que o grupo se reergueria e que dividendos voltariam a ser distribuídos. Quando esse dia chegasse, tudo seria pago. Só que o que chegou não foram esses dias de glória.
Só na Rioforte, a holding que operava nos sectores do turismo e do imobiliário, cerca de 500 activos tiveram ordem de arresto. Há ainda produtos bancários congelados, vendas em suspenso e difíceis imbróglios jurídicos por resolver: havendo ordens do Tribunal do Luxemburgo para se proceder à venda, o Ministério Público não deveria promover arrestos. “O argumento do Ministério Público é de que estes activos serão necessários para pagar indemnizações, caso haja condenações em processos-crime. Mas serão todos os lesados ressarcidos? Quem serão os primeiros? E se no final a PT vier a comer activos que deveriam ir para outros credores da Rioforte? A sensação que tenho é de que no final desta história muitos dos que perderam aqui dinheiro não vão ver um cêntimo”, diz uma fonte que trabalha directamente com o Tribunal do Luxemburgo.
O oposto dos desejados dias de glória é isto: operações de buscas, bens arrestados, quatro inquéritos do Banco de Portugal ainda em curso, e cinco a ser conduzidos pelo Ministério Público, além das dezenas de acções interpostas por lesados do BES e das investigações além- fronteiras. “O BPN era um grãozinho de areia ao pé disto e só agora está a terminar. Este vai ser o processo do século”, comenta uma fonte judicial.
O oposto dos desejados dias de glória é verem aquele para o qual sempre olharam como o homem-forte do BES e do GES a ser ouvido pela segunda vez, exactamente um ano depois, pelo juiz mais conhecido do país, num processo em que as suspeitas vão de burla qualificada a corrupção no sector privado. A vê-lo pagar uma caução de três milhões de euros para permanecer em liberdade. Ou ver essa liberdade circunscrita, um ano depois, à área da sua moradia, junto à Boca do Inferno, em Cascais, e a dois agentes da PSP – um em cada entrada –, a controlar que dali não sai.
Nesses momentos, Carlos Alexandre nunca esquecerá as palavras que pronunciou em 2005. Dia 21 de Junho, sala de audiências do Tribunal da Boa Hora, pós-21 horas da noite. De frente para Artur Albarran – que estava a ser interrogado por suspeitas de abuso de confiança e burla na venda de uns terrenos à ESAF (empresa do GES) enquanto era representante em Portugal da Euroamer – o juiz Carlos Alexandre deixou escapar: “Quando chegarmos ao BES é que isto vai ser o maior lamaçal da República”.