Há festa na cidade

Não será mentira dizer que todo o humor deve algo, aberta ou inconscientemente, a nomes como Chaplin, Keaton e Lloyd. Figuras arquetípicas das primeiras duas décadas do cinema de comédia, deles certamente constam impressões digitais no universo de Jacques Tati. E no entanto, o génio de apelido original Tatischeff, nascido na comuna francesa de Le…

Foi na década de 30 que o rapagão de 1,91 m de altura, que começou por divertir os colegas de râguebi ao final das partidas e se aventurou no music-hall com números de mímica, se iniciou nas curtas-metragens. Como argumentista, actor mas também realizador: é nessas três frentes que assina A Escola dos Carteiros (1947), uma das seis curtas inéditas contempladas neste ciclo programado pela Leopardo Filmes, e que está na origem da sua primeira longa-metragem, Há Festa na Aldeia (1949). Nesta última, apresentada na versão a cores, um carteiro que se pronuncia em monossílabos (o próprio Tati veste a pele deste precursor do sr. Hulot) pedala pelos cenários naturais da França rural, ainda antes da guerra, tentando seguir com eficácia uma quase militar etiqueta de entrega de correspondência. Já aí, Tati revelava uma sensibilidade métrica admirável: não só no ritmo dos gestos, dos sons, da montagem, mas também no ponto de interrogação que lançava sobre essa nova engrenagem, qual falácia progressista, que caía então sobre a França – a Troika do pós-guerra, o americano Plano Marshall.

O coração da obra do cineasta está nesta e nas três obras seguintes: o areoso e quase inocente As Férias do Sr. Hulot (1953), o oscarizado O Meu Tio (1958), onde atenta à emergente sociedade de consumo, e o monumental Playtime – Vida Moderna (1967), filmado no formato 70 mm e no qual Tati disse ter colocado tudo o que sabia e sonhava. Para este mandou construir uma cidade inteira em estúdio (Tativille), as rodagens prolongaram-se por três anos e, gastando o que podia e não podia, comprometeu os filmes seguintes – Trafic – Sim, Sr. Hulot (1971) e Parade (1973) – a sua própria casa e a obra no geral, que antes de ser preservada e recuperada pela Les Films de Mon Oncle, chegou a ir a leilão. Se valeu a pena? Playtime é assombroso na sua visão cénica, sem nunca perder o jogo interpretativo, exponenciado na versão restaurada, nem o tom cândido. Estio de luxo a decorrer desde quinta-feira no Espaço Nimas, em Lisboa, e a partir de 1 de setembro no Teatro Municipal Campo Alegre, Porto (consultar a página da distribuidora, leopardofilmes.com).