A morte roubada

Numa praia deserta de Argel, após assistir, com os olhos enxutos, ao enterro da mãe, Mersault dispara cinco vezes sobre um árabe, que permanecerá sem nome, sem rosto e sem palavras. Em tribunal, o autor do assassínio alega que este se deveu à luz do sol reflectida na lâmina de uma faca. Demasiado ocioso e…

O Estrangeiro (1942), do existencialista francês Albert Camus, acaba de ser republicado na tradução de António Quadros pela Livros do Brasil. O momento é o ideal para a edição simultânea, pela Teodolito, do primeiro romance do jornalista e cronista político argelino Kamel Daoud (n. 1970) – sob ameaça de uma fatwa lançada por um pseudo-imã salafista em 2014. Mersault, contra-investigação, lançado na Argélia em 2013, vencedor do Prémio Goncourt Primeiro Romance 2015, serve, ao mesmo tempo, de contraponto a O Estrangeiro, glosa ao monólogo auto-reflexivo de outro romance de Camus (A Queda, Livros do Brasil) e balanço da Argélia independente.

Daoud parte do domínio de uma língua, estrangeira e perfeita, que “confere ao ar ângulos de diamantes”. Será a principal arma do romance e da revolta e vingança do narrador, Haroun, irmão do árabe assassinado (Moussa), contra a injustiça da colonização e do esquecimento. Num bar, Haroun monologa perante um universitário francês estudioso da obra de Camus. Diz-lhe, sobre O Estrangeiro: “Procurei ali pistas do meu irmão e encontrava o meu reflexo, descobrindo-me quase sósia do assassino”. Confundidas também as identidades do assassino e do escritor francês, o jogo metaliterário garante a espessura dramática da narrativa e a sua dose de absurdo.

Romance muito original, Mersault, contra-investigação funciona como um repatriamento metafórico das cinzas de Camus para a Argélia e uma reflexão sobre a possibilidade de crença no Homem, em Deus ou na Revolução. Moral da história, se alguma existe? “O assassínio é a única boa pergunta que se deve fazer a um filósofo. Tudo o resto é conversa”.

Mersault, contra-investigação

Kamel Daoud

Teodolito

135 págs., 12 euros