Em democracia, há regras e formalidades que não podem ser dispensadas e etapas que é forçoso cumprir, ainda que pareçam inúteis. O PS, o BE e o PCP, tão zelosos desses princípios quando lhes convêm, deviam ter sido os primeiros a reconhecê-lo, em vez de irem a Belém pressionar o Presidente para ignorar os resultados eleitorais. Na prática, foi isso mesmo que fizeram, ao falarem em «perda de tempo».
A coligação PSD/CDS ficou sem a maioria absoluta, mas foi a força política mais votada. Tinha de ser chamada a governar, a menos que declinasse o convite, por reconhecer, à partida, que não tem condições para o fazer. Impedi-la de cumprir essa etapa seria uma entorse no regime, já por quebrar uma prática política e constitucional com várias décadas, já por ser um atestado de menoridade ao Parlamento.
Assumir que um Governo de Passos e Portas não passa porque Costa, Catarina e Jerónimo o dizem é presumir que os deputados não têm opinião própria e todos se limitam a cumprir as orientações das respetivas direções partidárias – mesmo discordando delas, como é o caso de vários deputados socialistas que já se pronun- ciaram contra. Os três líderes podem fazer vingar as suas posições sem o menor desvio, mas a prova tem de ser realizada no local certo porque tomar o voto por adquirido corresponderia a tornar o Parlamento dispensável.
Sem que se conheçam os termos do acordo tripartido em gestação, é difícil avaliar com segurança se ele tem condições para oferecer a estabilidade que António Costa promete. Mas as declarações de Jerónimo de Sousa, à saída da audiência em Belém, dizem alguma coisa sobre a atitude do PCP quanto ao apoio que se dispõe a dar ao eventual Governo socialista. Afirmou o secretário-geral do PCP que a maioria de esquerda é condição bastante para o PS formar Governo, ver o seu programa aprovado e entrar em funções, «solução que será tanto mais duradoura, quanto mais defenda os interesses nacionais e corresponda aos anseios dos trabalhadores e do povo português».
Na prática, Jerónimo dá a Costa a oportunidade de ver aprovado o programa de Governo e nada mais. Daí em diante, incluindo no Orçamento, ficará dependente da interpretação que o PCP fizer das políticas concretas, à luz do que considerar, em cada momento, os interesses nacionais e os anseios dos trabalhadores. Caso o compromisso de Jerónimo se resuma a isto, a estabilidade de um Governo de Costa é uma promessa tão vã como a vã esperança de Passos e Portas no futuro do Governo que tencionam apresentar.
Não obstante, o polémico e aparentemente difícil acordo será, a existir, a única saída razoável para aquilo a que Mário Soares chamou esta semana, na Covilhã, uma «confusão efetiva», expressão que diz muito do nulo entusiasmo, se não mesmo da desconfiança, com que o fundador do PS parece encarar a opção do líder atual. Este laconismo de alguém que, nos últimos anos, não tem poupado nas palavras contra a coligação de direita, pode soar estranho, mas é perfeitamente compreensível. Afinal, uma aliança do PS com o PCP, assuma ela os contornos que assumir, contraria a prática de toda a vida política de Soares em democracia. Nesse sentido, será uma derrota do líder histórico do PS. Um derrota apenas equivalente a essa outra ironia da história que seria, ou será, o facto de Cavaco Silva sair de Belém com o Governo entregue a uma maioria de esquerda.
Benefício da dúvida
Aos olhos da opinião pública, numa democracia consolidada e com um Estado de Direito digno desse nome, a prisão preventiva é sempre um indício de culpa. Se um juiz retira a um cidadão o bem precioso que é a liberdade, a sociedade acredita que ele só pode ter tido fortíssimos e bem fundados motivos para tomar decisão tão drástica. O inverso também acontece: se um homem foi preso preventivamente e depois libertado, sem culpa formada nem julgamento aprazado, instala-se a dúvida sobre se existe ou podem ser provadas as suspeitas que sobre ele recaem. José Sócrates beneficia agora dessa dúvida, a qual pesará sobre a Justiça enquanto esta não a desfizer.
O grande consenso
O caso do jovem luso-angolano em greve de fome não revela apenas insensibilidade e indiferença da Justiça e das restantes autoridades de Luanda perante a sua sorte, nem sobre os danos que um desfecho fatal causará à imagem do regime. Demonstra também que existem grandes afinidades sobre valores e direitos humanos entre as forças políticas portuguesas. A Rádio Renascença pediu-lhes opinião e o PS e o PSD coincidiram na resposta: nem uma palavra; CDS e PCP coincidiram igualmente, mas num embrulho de palavras que segue Rui Machete e o primado do silêncio sobre os assuntos internos de Angola. E ainda há quem se queixe de dificuldades na obtenção de consensos entre os partidos…