Os rituais têm importância em política. Ao assumirem tão grande recato, fugindo de aparecerem juntas numa cerimónia pública, as partes diminuíram a força simbólica de um entendimento inédito e considerado “histórico” por quem o aplaude e por quem o contesta. Como se receassem assumi-lo com frontalidade e todos os subscritores estivessem, afinal, incomodados com a solução em que se empenharam, ou insatisfeitos com os fracos resultados de tão laboriosas negociações, em especial para o PS.
Se esta é a mensagem transmitida pelo ritual das assinaturas, a substância dos acordos não deixa margem para grandes expectativas quanto à consistência e durabilidade da solução encontrada, bem como quanto à confiança que possa gerar. Na prática, os aliados do PS concordam e comprometem-se com todas as políticas que se traduzam na reposição de direitos e garantias eliminados ou reduzidos no tempo da troika. Em tudo o mais são omissos ou remetem para conversações bilaterais a que até a muito celebrada capacidade negocial de António Costa terá dificuldade de dar resposta.
No entanto, a ausência de comunistas e bloquistas num Governo do PS, podendo ser um sinal de fraca corresponsabilização e uma fragilidade adicional dos acordos, afigura-se também um resquício de realismo e bom senso. A sua presença apenas contribuiria para reforçar no exterior a ideia de um desvio ‘surfista’ da governação com consequências negativas para o país.
O previsível Governo socialista não cairá só por ver chumbada, por falta de entendimento entre os quatro grupos parlamentares que o sustentam, uma ou outra iniciativa legislativa. Mas não pode ser considerado estável quando, sobre tudo o que não consta dos acordos, tem de obter, caso a caso, o ‘sim’ prévio de três partidos com mundividências e agendas próprias tão diferentes entre si. Daí que, com alguma graça e a maldade do costume, Paulo Portas lhe tenha chamado “geringonça” (s.f. coisa mal feita e que se escangalha facilmente – segundo os dicionários). O problema está no facto de a coligação PSD/CDS nem sequer uma geringonça ter conseguido construir depois de se ter visto sem a maioria absoluta.
O acordo das esquerdas não garante de forma alguma que um Governo do PS cumpra a legislatura, do mesmo modo que a coligação PSD/CDS o não garantia em 2011 – e viu-se como, no Verão de 2013, esteve à beira de cair. Só que um Governo da PàF viabilizado a contragosto pelo PS teria o mesmo destino incerto no caso de Costa ter traído, não os opositores da nova aliança, mas aquela parte do seu eleitorado que agora rejubila e parece maioritária. Os resultados eleitorais foram o que foram. Não adianta especular sobre a intenção deste ou daquele setor do eleitorado ao votar como votou, porque o que conta é o conjunto dos votos e o número de deputados a que dão origem.
Derrotado nas urnas, António Costa meteu-se por uma via sinuosa que o fragiliza aos olhos de meio país e pode sair muito cara ao PS. Mas a verdade é que alcançou um entendimento mínimo que lhe permite formar Governo e fazer aprovar o seu programa no Parlamento, algo que a coligação não conseguiu.
Aqui chegados, não se vê que alternativa razoável possa o Presidente engendrar para impedir o que claramente lhe repugna. Pior do que um país governado por uma geringonça seria um país sem governo algum, ou seja, um Governo já derrubado e à mercê de um Parlamento hostil. É o que temos neste momento.
A força do exemplo
É um cidadão de méritos reconhecidos, que tem dedicado uma boa parte das suas competências pluridisciplinares à política e à vida pública. Até há duas semanas, foi presidente do Tribunal de Contas, cuja independência e rigor prestigiou durante a última década. Saiu com direito a uma reforma avultada, da qual abdicará enquanto exercer o novo cargo. Dir-se-á que é uma decisão fácil para quem toma lugar na administração da Gulbenkian. Um pequeno gesto que, no entanto – e como bem sabemos -, nem todos fariam. Guilherme d´Oliveira Martins foi condecorado pelo Presidente da República.
O cromo perdido
Um ministro que acaba de tomar posse – e de um Governo nascido para morrer no berço – não aceita pedidos de entrevistas. A não ser que venha deslumbrado e ansioso por protagonismo. Calvão da Silva, o ministro da Administração Interna que Passos foi desencantar a Coimbra, correu a dar uma entrevista ao Expresso antes que o Governo caísse. Celebrizado como jurisconsulto por ter explicado a razoabilidade de um presente de 14 milhões a Ricardo Salgado, Calvão voltou a dar nas vistas e a meter água nas ruas enlameadas de Albufeira, após as demoníacas enxurradas. Todos os governos têm os seus cromos. Este, francamente, prometia.
Crónica originalmente publicada na edição em papel do SOL de 13/11/2015