Governador e ministro em choque frontal

No novo gabinete do Terreiro do Paço, as reuniões de Mário Centeno com o governador do Banco de Portugal (BdP) dificilmente deixarão de causar uma sensação de ajuste de contas no recém-empossado ministro das Finanças. Por ironia do destino, frente a frente estão dois homens que protagonizaram uma disputa de contornos ideológicos nos corredores do…

Mário Centeno é académico de carreira no BdP, onde chegou quase ao topo do poderoso Departamento de Estudos Económicos, por onde passaram alguns dos mais proeminentes economistas do país. Ali sobressaíram Cavaco Silva, Vítor Constâncio ou Manuela Ferreira Leite.

Centeno esteve durante quase 10 anos como diretor adjunto do departamento e, na última fase desse percurso, com a saída da economista chefe  para funções na Caixa Geral de Depósitos, assumiu interinamente as funções de diretor. Tinha como presidente do conselho de administração Carlos Costa e a relação entre os dois foi tudo menos pacífica.

Segundo testemunhos recolhidos pelo SOL, Mário Centeno e Carlos Costa foram protagonistas de uma luta de poder dentro do banco central, que provocou fraturas no corpo de economistas da instituição.

Viviam-se os tempos agitados da intervenção da troika, em que as conceções de Vítor Gaspar como ministro das Finanças faziam caminho. Não chegou ao conhecimento público, mas a guerrilha de corredores tomou proporções pouco comuns numa instituição conservadora como o Banco de Portugal.

Com a chamada da troika e a ascensão de Gaspar a ministro, começa a ganhar forma um conceito económico: a desvalorização interna. Na falta de uma moeda própria para ganhar competitividade externa, Portugal deveria reduzir os preços e os custos salariais para atingir esse fim. A redução da Taxa Social Única (TSU) passou a ser encarada como o instrumento primordial para conduzir essa política.

Um estudo polémico

Uma das primeiras decisões de Gaspar, ele próprio um antigo quadro do BdP, foi encomendar ao banco central um estudo sobre a forma de compensar a quebra das receitas que tal medida implicaria.

Terá sido essa a génese do intenso debate que agitou o banco central. A proposta partiu da equipa de economistas que compõem o Departamento de Estudos. Centeno, então adjunto, desde cedo manifestou reticências face a essa opção, entrando em choque com a hierarquia. Não foi por acaso que o célebre estudo do BdP  não foi conclusivo. Traçava apenas cenários e quantificava as várias opções, sem se pronunciar quanto ao caminho a seguir. A elite dos economistas portugueses estava dividida.

Mas Vítor Gaspar não desistiu da ideia. Como contou numa longa entrevista a Maria João Avillez, num avião a caminho de Bruxelas teve a ideia que pôs milhares de portugueses a manifestarem-se na rua contra o Governo: a redução da TSU para as empresas, compensada com o aumento dos descontos dos trabalhadores.

Na prática, a decisão iria  provocar um rombo nos rendimentos mensais dos portugueses e, no BdP, Centeno mostra-se contrário à desvalorização interna e ao corte de rendimentos. Não hesita em criticá-la, primeiro dentro de portas e junto dos mais próximos, depois em intervenções públicas.

Críticas públicas

O economista contestava a necessidade de cortar salários e temia a utilização das receitas da Segurança Social para outro fim que não o pagamento de pensões e subsídios. E fazia questão de manifestar essas reservas aos elementos da troika que visitavam Portugal.

Centeno teve de acompanhar os trabalhos do FMI, da Comissão Europeia e do BCE em Portugal, nas tensas avaliações regulares do programa. A propensão dos credores para reduções salariais deixavam-no muitas vezes do lado contrário ao dos credores. Quem o ouvia de perto nessa altura recorda-se do desabafo: «A única coisa que o FMI quer é reduzir salários».

Centeno torna-se uma pedra na engrenagem e chega a haver queixas de ministros sobre a conduta do economista. Sem o apoio interno da hierarquia, Centeno optou por manifestar o desconforto de forma pública. Numa opção nada comum no BdP, criticou nos jornais as opções do programa de ajustamento. Uma entrevista ao Jornal de Negócios, ainda com Gaspar como ministro, foi explosiva: «Se continuarmos a insistir em resolver o problema via desvalorização interna salarial, não há salários que cheguem para pagar isso».

As tomadas de posição valeram-lhe dissabores dentro do banco. O crescente protagonismo de Centeno caiu mal junto de Carlos Costa, alinhado com a visão de Gaspar e cioso do recato dos economistas da casa. O adjunto que fazia as vezes de principal perdeu a confiança da administração.

Preterido em concurso

Quando, no final de 2013 são finalmente conhecidos os resultados do concurso para ocupar o lugar definitivo de diretor do departamento, Centeno era o preferido do júri, mas a administração tirou-lhe o tapete. O concurso ficou sem efeito. «Nenhum candidato reunia a combinação de atributos necessária para assegurar o padrão de liderança e de gestão de equipas que garantisse a prossecução de um mais ambicioso posicionamento estratégico do departamento nos planos analítico e institucional», justificou o banco central.

E, nova ironia, atribuiu ao rival Vítor Gaspar, entretanto saído do Governo e com funções de consultor no BdP, a missão de definir o perfil do novo diretor. Foi escolhida Isabel Horta Correia.

Os antecedentes de antagonismo entre Mário Centeno e Carlos Costa antecipam uma relação complexa, agora que a relação hierárquica se inverteu. Centeno é ministro das Finanças e tutela o sistema financeiro.

Sem a cumplicidade que mantinha com Vítor Gaspar, Carlos Costa sabe que qualquer problema que envolva o banco central tenderá a ser foco de tensão com os socialistas, que foram contra a sua recondução.

Os primeiros sinais de divergência já apareceram: Centeno criticou publicamente o homem que Carlos Costa escolheu para liderar a venda do Novo Banco, Sérgio Monteiro. Com os dossiês Banif e resolução do BES ainda por terminar, não faltarão focos de tensão entre os dois economistas.