2.No que concerne ao conteúdo da decisão – ou seja, ao seu mérito, ao veto que impede a lei de entrar em vigor -, somos de entendimento diverso do perfilhado pelo Presidente Cavaco Silva: entendemos que a adopção por casais do mesmo sexo é plenamente justificável numa sociedade aberta, pluralista, tolerante e que coloca os afectos e a protecção da criança no topo das suas valorações axiológicas. Há, pois, um equívoco na fundamentação do veto político de Cavaco Silva: o Presidente encarou a medida legislativa como uma conquista da comunidade homossexual, como mais um direito atribuído aos casais do mesmo sexo. Nada de mais erado.
2.1.Trata-se, antes, de consagrar legislativamente mais um meio jurídico de concretizar o direito fundamental das crianças de viver inseridas num meio familiar estável, susceptível de lhes propiciar um desenvolvimento (físico, moral e intelectual) harmonioso. O enfoque não está no casal, e respectiva orientação sexual, mas sim no apuramento da solução que melhor defende os interesses da criança.
3.Dir-se-á que o ideal é assegurar um meio familiar socialmente normal, o que implica a heterossexualidade dos progenitores. E que a solução para proteger as crianças deve ser o de agilizar, tornar mais fácil, a adopção por casais heterossexuais. Parece uma posição muito equilibrada e sensata. Mas, se é assim tão fácil, por que razão os diversos deputados que tivemos nos últimos (longos) anos, os sucessivos Governos e os Presidentes da República, nada fizeram para melhorar o regime da adopção? Suprir as suas insuficiências e tornar mais atractivo para casais de sexo diferente? Porque é que ninguém fez nada: nem a Assembleia da República, nem o Governo legislaram; os Presidentes da República que tivemos até ao momento não prestaram atenção ao problema das crianças abandonadas pela sorte da vida – e agora pretendem arvorar-se em pregadores do fundamentalismo?
4.Admitimos que nós próprios já fomos adversários da adopção por pessoas do mesmo sexo – ainda alunos da Faculdade de Direito, escrevemos pequeno artigo revelando as razões políticas, morais e jurídicas, da nossa posição. Contudo, a nossa teoria foi-se adaptando à prática. Mais: a nossa teoria sofreu o choque da prática. É que as soluções jurídicas não devem tentar, à força, transformar a sociedade, impedindo o seu desenvolvimento e travando a resolução dos seus problemas – pelo contrário, as soluções jurídicas devem responder às necessidades sociais, almejando sempre o fim último do Direito: a Justiça. Ora, na prática, fomos confrontados com vários casos em que a alternativa era manter a criança numa instituição de acolhimento – ou entregá-la a um casal homossexual, estável, com condições e muita vontade em educar a criança. Na instituição, a criança era mais um número; no lar daquele casal, a criança seria uma pessoa amada. Entre estas duas alternativas, a nossa opção era clara: como foi a opção do Tribunal.
4.1.É que os tribunais – embora não estejam habilitados para confiar a criança a um casal homossexual – podem conferir a guarda da criança a um dos elementos do casal, mediante a observância de determinadas condições fixadas na lei. Portanto, na prática, já se verifica uma adopção de facto por casais do mesmo sexo – sem que tal se tenha revelado um problema social. Pelo contrário. Nem se diga que a adopção por casais do mesmo sexo é inconstitucional, porquanto a Constituição confere o direito à criança de ter um meio familiar normal – ora ter progenitores do mesmo sexo não é socialmente normal. Perguntamos nós: viver numa instituição de acolhimento é normal? É socialmente normal viver numa casa em que se é “mais um”? Mais uma obrigação? Atenção: há casas de acolhimento de elevadíssimo mérito, cujos responsáveis, trabalhadores e trabalhadoras, são verdadeiros heróis. Mas o acolhimento em instituição é uma medida de última” ratio”, um paliativo para combater um problema social. Não pode ser considerado uma medida definitiva, exemplar e isenta de problemas. Quer o acolhimento em instituição, quer a adopção por casais do mesmo sexo não são medidas óptimas: são medidas possíveis. São medidas menos más – e uma (adopção por um casal do mesmo sexo) é menos má que a outra (acolhimento em instituição).
5. Refira-se que o Governo anterior, liderado por Pedro Passos Coelho, aprovou um novo regime jurídico da adopção, o qual pretende agilizar o processo, tornando-o mais fácil e atractivo. E que – na opinião de vários reputados especialistas – abria a porta, subtilmente, à adopção por casais do mesmo sexo. Estranhamos, pois, que o mesmo PSD de Passos Coelho tenha votado contra a medida legislativa ora objecto de veto pelo Presidente Cavaco Silva: terá sido uma tentativa de não alienar o apoio da ala mais conservadora do PSD, onde se inclui Rui Rio? Já a pensar nas directas e no Congresso? Poderá ter sido. Mais importante, nos tempos mais próximos, é perceber os ganhos efectivos que a nova legislação sobre o processo de adopção conquista. Ou se, afinal, trata-se apenas de (mais uma) medida pífia na resolução de um problema social estrutural: a protecção das crianças que, por qualquer razão, aprendem, desde muito cedo, que sonhar é um privilégio.
6.Dito isto, passemos à análise política da decisão do Presidente Cavaco Silva. Mais do que um juízo sobre o mérito, a decisão foi uma marca de força política que Cavaco quis deixar para os registos da nossa História política. O muito debilitado Presidente Cavaco Silva, em final de mandato, quis provar que sai pela “porta grande”, alinhado com as forças políticas que o elegeram.
Com efeito, Cavaco Silva teve de ceder quanto à nomeação do Governo de extrema-esquerda com o extremo-PS de António Costa – engolindo, pois, um “sapão” vermelho, perante as críticas das forças políticas de direita. Mais: a tese segundo a qual, o Presidente Cavaco Silva foi o principal responsável pela debilitação dos poderes presidenciais fez escola – a maioria dos jornais, na semana passada, já escreveu o epitáfio político de Cavaco Silva. Acossado, Cavaco Silva, à saída da sua assembleia de votou no domingo, declarou que está em funções até ao próximo dia 9 de Março – e que não abdicará de nenhum dos seus poderes. E que fez tudo bem nada e não se enganou em nada, durante dez anos. Quanto a este último ponto, deixemos o nosso ainda Presidência na ignorância reconfortante.
7.Ora, o diploma da adopção por casais homossexual foi a oportunidade de ouro para Cavaco Silva criar uma fonte de oposição à actual maioria de esquerda – e agradar a alguma direita. A direita de que o Presidente Cavaco Silva gosta. Quer ficar, pois, para a história como o Presidente que não se conformou com o esquerdismo e com os esquerdistas. Até porque o veto político é incoerente com posições passadas assumidas pelo Presidente Cavaco Silva: pense-se, por exemplo, no casamento entre pessoas do mesmo sexo. Aí, Cavaco pediu ao Tribunal Constitucional que se pronunciasse sobre a constitucionalidade do casamento homossexual – perante a pronúncia pela não inconstitucionalidade, Cavaco Silva promulgou.
7.1. Por que razão, desta vez, optou pelo veto político (e não jurídico!)? Precisamente, para marcar a sua posição política de não cedência ao esquerdismo – e, adicionalmente, porque requerer ao Tribunal Constitucional que se pronunciasse sobre a conformidade constitucional desta medida legislativa, impediria o Presidente Cavaco Silva de a vetar. E Cavaco Silva quer ficar para a História como o Presidente que se opôs à adopção por casais do mesmo sexo. Neste sentido, é um presente envenenado para Marcelo Rebelo de Sousa: a partir de agora, sempre que Marcelo seja confrontado com uma “matéria de costumes”, terá o precedente de Cavaco Silva. A direita irá jogar o argumento de que o outro Presidente, ao menos, tinha coragem para vetar politicamente…Evidentemente que faltou muita coragem a Cavaco Silva durante dez anos – mas a última imagem é a mais impressiva.
8.Em suma, Cavaco Silva aproveitou a lei que permite a adopção a casais homossexuais para criar um facto político muito eficaz (uma verdadeira “cavaquice”). Confirma-se, pois, que Cavaco Silva é o criador de factos políticos por excelência. Felizmente, no próximo dia 9 de Março, irá ter lugar o facto político mais bem conseguido do seu segundo mandato.