Viver para Contar: Crianças Grandes

Nestes programas os adultos comportam-se como crianças grandes. Pedro Guerra é o menino irritante, José Pina é o menino traquinas, Manuel Serrão é o menino ajuizado.

Os programas de comentário futebolístico ocupam cada vez mais espaço nos canais televisivos, o que mostra o seu sucesso. As TVs regem-se por critérios de audiência – pelo que, se um programa ocupa muito espaço num horário nobre, é porque a sua audiência o justifica.

Confesso o meu regular contributo para engrossar o número de telespectadores desses debates, que para mim funcionam como momentos de diversão. São mesmo das poucas coisas que na TV me fazem rir. Rivalizam com as comédias portuguesas dos anos 40, que levavam (e ainda levam) os portugueses à gargalhada. Alguns participantes desses programas competem – decerto involuntariamente – com Vasco Santana, António Silva ou Ribeirinho, tal o humor das suas tiradas e sobretudo dos diálogos que protagonizam.

Na tvi 24 há um programa chamado Prolongamento, que tem como participantes Pedro Guerra, Manuel Serrão e José de Pina, moderados por Sousa Martins, que recomendo vivamente. É do melhor que há. Para se ter uma ideia, basta dizer que Manuel Serrão, que n’ A Noite da Má Língua provocava escândalo por dizer ‘enormidades’ e era considerado um ‘troglodita’, faz agora figura de menino bem comportado. De elemento apaziguador.

Os grandes despiques são entre Pedro Guerra, adepto faccioso do Benfica, e José de Pina, adepto doente do Sporting.

Guerra leva qualquer um ao desespero, porque é capaz de negar, sem se rir, as evidências mais flagrantes. «Penálti? Qual penálti?» – diz perante um pontapé de um jogador do seu clube num adversário. «Se se vir bem, a perna do adversário é que foi colocar-se na trajectória do pé do defesa do meu clube».

José de pina é um humorista que terá sido posto no programa, penso eu, para o aligeirar. Para fazer humor à custa do facciosismo de Guerra. Mas não consegue. Porque Guerra tem um tal descaramento que põe Pina fora de si, inibindo-o de ser engraçado. Pina fica com as veias do pescoço à beira de rebentar, salta por cima do humor e começa a gritar com o outro – mas a sério. E isso dá ainda mais vontade de rir.

Para cumprir o seu papel de humorista, Pina leva objectos para o estúdio, como um sabre da Guerra das Estrelas, para atacar Guerra, ou uma buzina daquelas estridentes que se usam nos estádios, para o mandar calar. Mas acaba por não conseguir usá-los convenientemente, pois perde as estribeiras e descontrola-se.

Como o leitor já percebeu, nestes programas os adultos comportam-se como crianças grandes. E talvez não seja por acaso. Com os anos, os homens vão construindo uma casca à sua volta que os protege. Que os impede de fazer e dizer grandes disparates, e também os defende das agressões do mundo exterior. Mas continuam a ser crianças grandes – só cresceram aparentemente. A criança permanece viva lá dentro do ovo. Não se expõe, mas não desapareceu. Está escondida. Ora, em situações que provocam um desequilíbrio emocional, a casca do ovo parte-se e a criança fica à mostra.

Não a criança ingénua, pura, incapaz de fazer maldades. Mas a criança manhosa, capaz de mentir com quantos dentes tem na boca.

Pedro Guerra é o menino irritante que exaspera os outros. José de Pina é o menino traquinas que tem a mania que é esperto. Manuel Serrão, no meio disto, até faz de menino ajuizado – que olha complacentemente para as diabruras dos companheiros de brincadeira.

Estes programas desportivos fazem um imenso bem à saúde, se vistos como comédias, sem excessos de clubismo. Enquanto os debates políticos nos irritam, pelos disparates que se ouvem, estes divertem-nos.

É certo que nos programas futebolísticos também se dizem imensos disparates, mas há uma diferença. Enquanto na política os disparates têm muitas vezes consequências, pois fazem opinião, ali não têm consequências nenhumas. Os jogadores não começarão a pontapear a bola de outra maneira por causa do que diz Pedro Guerra ou José de Pina. Enquanto os debates políticos podem ser penosos, os programas de debate futebolístico são apenas cómicos.

jas@sol.pt