A política do ‘faz de conta’

O celebrado volte face de António Costa na noite eleitoral de 4 de Outubro legitimou o ‘faz de conta’ em política.

Acometido de súbita amnésia, que o fez esquecer as famosas ‘vitórias por poucochinho’ com que derrubou António José Seguro – remetido, desde então, a um inexplicável silêncio –, o atual primeiro-ministro nunca mais largou a alquimia que o faz transformar derrotas em vitórias.

Depois das legislativas, as presidenciais foram outro exercício de contorcionismo em cima do muro, com a aceitação de dois candidatos em nome do PS, fingindo apoiar ambos, enquanto incentivava as hostes socialistas a dedicarem-se na sombra à campanha de um só deles.

Perante o desfecho das presidenciais logo à primeira volta, a sua pose de vencedor – embora vencido – logo incutiu rasgados elogios em não poucos comentadores avençados – que descortinaram no êxito pessoal de Marcelo Rebelo de Sousa um somatório de virtudes para as aspirações de Costa, e nunca um estorvo. De novo , o ‘faz de conta’.

O primeiro grande teste ao frentismo de esquerda – descontadas as frivolidades fraturantes – é, naturalmente, o Orçamento do Estado.

Com alguns avisos à navegação, a ala esquerda do PS – em compita com o PCP e o Bloco –, desdobrou-se em entrevistas, enquanto Costa também não se fez rogado.

O objetivo implícito era passar a ideia de que o Governo estava, patrioticamente, a bater o pé a Bruxelas.

O resultado é conhecido: como em Bruxelas sabem fazer contas, devolveram o esboço de Mário Centeno e obrigaram-no a dar o dito por não dito nas previsões, descendo à terra, antes que as agências de rating – especialmente a canadiana – se lembrassem de baixar as notações, precipitando outra crise como em 2011.

O novo esquiço do Orçamento obteve o ‘visto’ de Bruxelas, com reservas que não são miudezas, incluindo as advertências para o risco de incumprimento. Mas Costa é, invariavelmente, apontado nos media como negociador hábil, como se tivesse descoberto, à imitação do Syriza, uma salvífica terceira via para «virar a página da austeridade». Mais uma vez, o «faz de conta».

O recuo de Costa e Centeno foi acompanhado da clássica ‘cortina de fumo’, com a novidade do estremecimento patriótico para consumo interno. Ensinam os manuais que o ‘inimigo externo’ ajuda sempre a ocultar as fraquezas de governação. O ‘chavismo’ na Venezuela é um bom exemplo atual.

Admirador confesso desse modelo, Arménio Carlos – apontado como putativo sucessor de Jerónimo de Sousa – até descobriu, em nome da CGTP, que este Orçamento ‘marca claramente’ um rumo diferente. Se pensou no desastre, não o disse.

De facto, se as coisas correrem mal – e a Europa não estiver pelos ajustes para caucionar outro resgate –, ainda ouviremos as esquerdas reclamarem, em uníssono, o regresso da moeda própria, como ‘escudo’ protetor da soberania…

O sorriso (amarelo) de Costa ao lado da chanceler alemã, quando esta elogiou Passos Coelho, deve ter-lhe custado imenso…

Se excetuarmos o funcionalismo público, beneficiário ativo do Orçamento, as migalhas anunciadas para os menos favorecidos não mitigam a pobreza.

A legião de servidores do Estado – com emprego garantido, várias ‘pontes’ para desfrute lúdico e menos horas de trabalho – constitui uma força de voto que António Costa quer cativar para obter a ‘legitimação’ eleitoral que sabe faltar-lhe, quando arranjar um pretexto conveniente e precipitar a queda do Governo.

A mais recente humilhação de Centeno – que ainda responde pelo título de ministro das Finanças –, teve a ver, precisamente, com um ‘deslize’ que cometeu na entrevista ao Expresso, ao declarar, a propósito da Função Pública: «Não posso admitir se as 35 horas avançam este ano».

A máquina da CGTP deve ter entrado em reboliço, e António Costa apressou-se a tirar o tapete ao ministro no próprio dia da saída do jornal, desmentindo-o e afirmando, numa reunião partidária no Porto, que «as 35 horas entrarão em vigor no próximo dia 1 de Julho».

Centeno está, aliás, a especializar-se em gafes. Noutra entrevista ao DN, achou que «quem tem 2000 euros de rendimento tem uma posição privilegiada»? À luz desta lógica, como poderá ser classificado o estatuto social do ministro, ao declarar mais de 12 mil euros de rendimentos mensais no Tribunal Constitucional?

Rendimentos aparte, Centeno tem-se entretido com jogos florais, procurando escamotear a realidade: o Orçamento agrava a carga fiscal, designadamente nos impostos indiretos, os mais cegos.

É um ministro em queda, antes mesmo de chegar a qualquer sítio.

Contas feitas, adivinha-se bem por onde passa a ‘linha vermelha’ de António Costa: a ‘austeridade de esquerda’ penaliza a chamada classe média, eterna enteada do fisco. E ainda ironiza com os aumentos…