Viver para Contar: Ai, a família

Poucos dias antes da tragédia de Caxias começara a ser julgado Manuel Maria Carrilho, por violência doméstica.

 

TUDO começou com um rodapé a passar num canal televisivo (a CMTV): uma mulher e duas crianças tinham caído ao Tejo em Caxias, próximo do forte da Giribita. Pouco depois, o canal começava a transmitir em direto. As imagens eram captadas de cima, da Estrada Marginal. Lá em baixo, na praia, viam-se várias pessoas ajoelhadas junto ao que parecia ser um pequeno corpo. Pelos movimentos, estavam empenhadas numa operação de reanimação, pressionando o tronco da criança em movimentos ritmados.

Passados uns momentos, dois homens ocultavam a cena com uma manta térmica e deixávamos de ver o que se passava. Mas não seria preciso muito tempo para os socorristas começarem a levantar-se, tornando claro que a vítima tinha sucumbido.

DECORRERAM mais uns longos minutos em que os jornalistas que acompanhavam o caso no local e no estúdio temiam dizer as palavras fatais. Já todos havíamos percebido o que acontecera e eles continuavam – compreensivelmente – a evitar pronunciá-las. Só tempo depois um oficial da Marinha confirmaria a morte de uma bebé de 19 meses, adiantando que uma menina de quatro anos estava desaparecida nas águas, onde prosseguiam operações de busca. Entretanto, a mãe (de 37 anos) saíra da água em estado de choque e adiantado estado de hipotermia, tendo sido encaminhada para um hospital.

Desde o primeiro momento, a tragédia estava à vista: a mulher metera-se na água pelo seu pé, levando as duas crianças consigo. Entretanto arrependera-se – e voltara a terra. As crianças é que já não se salvariam.

Saber-se-ia depois que a mulher fizera a queixa do marido por maus tratos e agressões sexuais às filhas, e saíra de casa tempos antes, estando em processo de divórcio. Em desespero, não aguentando a pressão, decidira matar-se. E levara as filhas com ela. Porquê? Talvez para se vingar do marido. No fim de tudo, o homem não ficaria a rir-se: estragara-lhe a vida, mas também se desgraçaria a ele, perdendo as crianças.

Ou então, no seu desvario, a mulher achou que matando as filhas as salvaria do inferno em que ficariam se continuassem neste mundo.

POUCOS DIAS ANTES da tragédia de Caxias começara a ser julgado em Lisboa Manuel Maria Carrilho, por violência doméstica. A mulher, Bárbara Guimarães, acusa-o de a ter agredido física e psicologicamente, e de ter mesmo ameaçado matá-la – a ela e aos filhos.

São casos muito diferentes, que envolvem pessoas com estatutos muito diferentes, mas que têm uma causa comum: o desmoronamento da família. É um flagelo dos tempos modernos, a que não se tem dado a devida atenção. A desagregação da família tem consequências a todos os níveis: no equilíbrio das crianças, no seu desenvolvimento e rendimento escolar, no bem-estar e felicidade dos pais.

Dizia-me há dias um amigo esta evidência: a família é a primeira rede de segurança social. De facto, quando alguém cai em desgraça, quem melhor do que os familiares poderá acorrer-lhe? São os pais que ajudam os filhos, os filhos que amparam os pais, os irmãos que auxiliam os irmãos, os padrinhos, os avós ou os tios que tomam a seu cargo crianças órfãs.

A DESAGREGAÇÃO da família tem, pois, consequências terríveis em todo o equilíbrio da sociedade e na sua estruturação. E fala-se pouco disto. Porquê? Porque não é politicamente correto falar da família. Gastam-se horas intermináveis nos media  a discutir assuntos de lana caprina e verifica–se um silêncio cúmplice em redor deste tema decisivo.

É certo que há, nesta questão, uma vertente irremediável. A chamada ‘vida moderna’ proporciona um certo deslaçamento familiar que nada nem ninguém pode evitar. Mas o Governo poderia fazer mais pela família. Poderia ajudar mais as famílias, proporcionando condições que favorecessem a sua estabilidade.

E também as pessoas poderiam fazer algo mais, se pensassem um pouco. Há hoje uma certa leviandade na forma de encarar este tema. As pessoas separam–se e depois logo se vê. Nuns casos há demasiado egoísmo, noutros vistas curtas. Não se pensa na família como um bem essencial, mas em qualquer coisa que se pode deitar fora às primeiras dificuldades.

SE NÃO FOR possível encontrar forma de inverter este caminho e tornar as famílias mais sólidas, se o deslaçamento familiar prosseguir, o processo de decadência das nossas sociedades será inexorável. A instabilidade será cada vez maior. As pessoas serão mais infelizes. A primeira rede assistencial entrará em colapso definitivo. As crianças terão mais problemas. Os adultos serão mais vulneráveis.

Tratar com displicência os temas relacionados com a família é um verdadeiro crime.

jas@sol.pt