Na semana em que foi nomeado diretor adjunto da SIC, o conhecido jornalista económico deu uma longa entrevista em que se mostrou sempre à vontade. Falou da vida na aldeia e das dificuldades por que passou até chegar à SIC.
Vai frequentemente a Vale da Lage?
Duas a três vezes por mês. Tenho lá os meus pais, o meu irmão, a minha cunhada.
É verdade ou é mito que chegou a ir para a escola de pés descalços?
Nunca passei por essa situação. Os meus pais sempre trabalharam muito, sempre tive vestuário e alimentação, vivemos sempre com dignidade.
Os seus pais trabalhavam em quê?
No campo, na construção civil, no que havia.
Mas não tinham televisão em casa…
Aqui há dias passei na aldeia onde vi televisão pela primeira vez. Foi em 1969, no direto da ida do homem à Lua.
A televisão funcionava com uma bateria e ainda me lembro vagamente das imagens.
Está aqui já desfeito outro mito urbano, uma vez que pensávamos que tinha visto televisão pela primeira vez aos 14 anos.
A referência dos 14 anos é a data de eletrificação da aldeia onde eu vivia, em 1978. Os meus pais acabaram por comprar uma televisão um ano depois.
E como ganha o prazer pela leitura?
Pedia a um amigo que estudava em Tomar e que me levava os livros. Era uma maneira de ocupar o tempo. Lia tudo o que me aparecia, desde jornais a livros antigos. Claro que na infância e juventude foi a altura do tio Patinhas, do pato Donald, do Urtigão. Devorava tudo de banda desenhada. Mais tarde apareceu uma coleção que eram os livros RTP. Publicaram os grandes clássicos, mas também coisas de atualidade, como um livro chamado “Vamos Fazer Televisão”, do Vasco Hogan Teves, de que nunca me esqueci.
Nessa altura já imaginava que viria a trabalhar na televisão?
Não, nunca iria imaginar. Pensava era ser escritor. Mas mais tarde concluí o seguinte: é preciso viver para ser escritor e a pessoa que não tem tantas experiências de vida não podia aspirar a isso. Li muita coisa do Dostoievski, do Sartre, mesmo sem perceber.
Disse numa entrevista que ao ajudar os seus pais aprendeu o valor do trabalho.
Sim, porque cresci com a ideia de que as coisas não caem do céu. Têm de ser conquistadas.
Que tarefas eram essas?
Cavar, colheitas, tudo o que era necessário no campo.E nunca interrompi a minha vida de estudante por causa disso. Quando mais tarde fui para a faculdade, aí sim. No primeiro ano da universidade, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, em cada semestre passava dois meses e meio a trabalhar e outros dois meses e meio a estudar para os exames.
A trabalhar em quê?
No que havia. Apanha de fruta, a ajudar na construção civil… Os chamados biscates.
Voltando à infância. Já falámos do trabalho e dos estudos.E as brincadeiras?
No inverno, os regatos corriam a sério e eu cortava canas e fazia um moinho, que ficava a andar durante dias. De vez em quando ia lá ver se estava no sítio. Outra vez, mais tarde, peguei em tábuas que estavam para queimar na lareira, cortei-as e fiz uma guitarra com um fio de pesca.
Há alguém que o tenha marcado especialmente na infância?
Todas as pessoas naquelas aldeias ficaram no meu maginário como pessoas que lutaram contra as adversidades, contra a escassez, o rigor do clima. Nunca naquela região houve notícia de roubos ou de violência com armas. Isso, para mim, foi a melhor referência.
Como o veem hoje essas pessoas?
É uma festa. Há pessoas que são muito críticas em relação ao que eu digo, mas isso não os impede de me cumprimentarem e de falarmos.
Tinha alguma alcunha?
No liceu era “o filósofo”. Tinha uns colegas que me chamavam “o filósofo” porque andava sempre com livros debaixo do braço. Houve uma fase em que lia os existencialistas, e andava com o Sartre, o Camus.
Quando decidiu que ia ser jornalista?
Escolhi o curso de Jornalismo em primeiro lugar e, como tinha média de 16,5, entrei logo na primeira opção. A meio do curso comecei a interessar-me pela atualidade, e no terceiro e quarto ano escolhi a vertente de jornalismo. Tomei contacto com a realidade das redações e tive a oportunidade de fazer o curso da rádio TSF no fim da licenciatura. Foi uma sequência.
Teve duplo emprego?
Sim, desde o início. Depois de fazer o curso fiquei a trabalhar na rádio TSF e numa revista de economia que era a “Classe”.
Quando se interessou pela área económica? É que, não tendo sido brilhante a Matemática, não é um caminho muito óbvio.
Sempre achei estranho o exercício do fio da navalha de fazer jornalismo político reproduzindo ideias, frases, citações de políticos que depois vinham a seguir dizer “mas eu não disse bem isso”. Sempre me fez impressão, porque achava que aquelas opiniões tinham de ter por base alguma coisa. Sempre me interessei mais pelos números e pelo que eles representam no sentido de poder desdizer a quem estava a construir uma tese, fosse político, fosse gestor, fosse economista, e sendo certo que aquela formulação de que os números dizem muito, e dizem, o que queremos, até certo ponto é verdade, se nós escolhermos os números que queremos ou a maneira como eles estão construídos, mas há determinados indicadores que não mentem. Continuamos a ouvir a discussão de quem fez a dívida pública, ou quem fez mais défice, ou quem provocou desacerto das contas externas no país. Vamos ver as séries longas dos boletins estatísticos do Banco de Portugal e está lá tudo, e os anos em que foram feitas as desgraças do país. Está lá tudo aquilo, não falha.
Quais foram os períodos de desgraça do país?
Foram os períodos de 75 a 78, de 79/80, de 95 a 2000, depois de 2005 a 2011. Podem tirar-se muitas ilações disto.
Basicamente falou dos governos de Guterres e Sócrates.
Em termos de dívida pública, sim. Depois há um drama complicado no exercício do jornalismo económico e político. Quem quiser analisar a realidade e formar opinião a partir dali, qualquer que seja o jornalista, está sujeito a levar um carimbo: é de direita ou é de esquerda, é impressionante.
Isso preocupa-o?
Aprendi a relativizar. Quando digo que um país entrega a sua soberania e põe em causa o futuro dos seus filhos e netos a fazer défice, levo um carimbo de direita. E quando digo que defendo a fixação de preços no mercado das empresas de eletricidade, não há ideia mais de esquerda.
Mas continua a ser cliente da EDP.
Estou como cliente da EDP até ao fim para ver o que eles me fazem, quero ver. Aqui há tempos aconteceu uma coisa… nem sei como classificar. Estava um senhor à porta da minha casa para desligar a eletricidade. Tenho o contador do lado de dentro do portão. Dizem que me enviaram um conjunto de cartas e que não respondi e, portanto, iam cortar-me a eletricidade. Só lhes disse: “Ó meus amigos, mas vocês acham que eu estou a dever alguma coisa a alguém?” Vim a descobrir que aquilo é um negócio. Eles fizeram acordos com empresas que ganham dinheiro a desligar e a voltar a ligar, têm incentivos para fazer aquilo. A EDP é um Estado dentro do Estado e as empresas que levitam à volta dela… uma coisa tenebrosa, enfim.
Há mais empresas que façam isso?
Estou a falar da EDP como falo das outras todas. As empresas do setor de eletricidade funcionam em tudo menos em negócios de concorrência perfeita, são negócios politicamente protegidos.
Mas porque acha que não há essa concorrência?
Como são poucos operadores, os mercados são estabelecidos através dos seus interesses e através de legislação publicada no parlamento. Portanto, o parlamento não faz o seu trabalho democrático que devia fazer para libertar esses setores e introduzir concorrência perfeita. Não faz. São poucos e manobram o processo legislativo.
O que acha que está mal no país e o que se devia fazer?
Há um problema que é básico. Fazer qualquer coisa é uma questão de atitude. Não consigo conceber que haja na matriz política quem pense que pode viver décadas, para não dizer séculos, a gastar dinheiro que não é seu porque não vem da atividade que desenvolve. Para mim, a resolução dos problemas do país começa na mudança imediata nos decisores políticos de pensarem que os problemas só se resolvem com o dinheiro que têm. E a partir daí resolve-se o problema do défice. Quem ouvir diz: lá está ele com a austeridade. Mas a austeridade não tem de ser de direita, porque não é de esquerda? A austeridade de esquerda pode ser implementada, como bem disse José Azevedo Pereira, o ex-diretor da Inspeção-Geral dos Impostos, numa conversa comigo, em que explicou que as maiores fortunas com património de 25 milhões e rendimento de 5 milhões de euros anual – essa classe que tem cerca de mil famílias em Portugal –, só 200 é que são tributadas devidamente. Porque não se tributam as mil? Arranjem-se formas, alterem-se as leis. Desmantelem-se as leis que foram construídas para os proteger. Se calhar, isso liberta a tão falada classe média no sentido de não pagarem tanto nos impostos e não fugirem para o exterior, onde vão vender a sua massa cinzenta. Nos padrões internacionais, esse tipo de famílias com altos rendimentos suportam uma parte proporcionalmente maior do imposto sobre o rendimento, e em Portugal ficam a um décimo disso ou até menos. Porque não criar impostos especiais extraordinários a grupos económicos, nomeadamente empresas de energia, de eletricidade, de grande distribuição, que esmagam os produtores? Porque não fazer uma taxa especial em relação ao valor acrescentado e desagravar um bocadinho aquilo que é a prestação do trabalho por conta de outrem ou dos trabalhadores independentes a recibos verdes, que são considerados patrões de si próprios e pagam um horror de impostos e de Segurança Social? Assim não vamos lá.
Esse é o principal problema do país?
Não, esse é um dos aspetos. Outro tem a ver com o tipo de abordagem que se faz na discussão dos problemas políticos e económicos do país. Normalmente discute-se só o aspeto da dívida pública. Se calhar, nem é o aspeto mais importante. O mais importante é o quadro de relações do país com o exterior, ou a falta dele, é a balança corrente e de capital. Com esse saldo que, pela primeira vez em 60 anos, se tornou positivo em 2012, não me venham dizer que o programa de assistência foi mal feito no âmbito da troika, porque chegámos a momentos da nossa vida coletiva em que não conseguimos resolver os problemas por nós próprios. É pena mas tem sido assim, a história tem mostrado isso. Teve de vir um programa imposto de fora para nós abrirmos os olhos ao mundo e crescer para fora. Estávamos em circuito fechado, criámos economia de ficção alimentada com dívida, e houve uma grande parte da nossa economia que teve de desaparecer. Quando se diz que houve muitas falências e desemprego, toda a gente já sabia que tinha de haver, porque a economia estava construída numa base de ficção. A procura interna também não pode ser deixada cair, mas não pode ser alimentada com dinheiro vindo de fora, senão isto é um ciclo vicioso cada vez pior.
Diz que o país está asfixiado…
Este país está verdadeiramente asfixiado. Qualquer empresário que queira estabelecer um novo negócio, por exemplo de agropecuária, arranja um terreno e tenta começar a trabalhar legalmente. Espera anos para ter as licenças, porque isto é um país capturado. Capturado no pior sentido: pelos ministérios da Agricultura, da Economia, do Ambiente, até da Saúde em certos aspetos. Câmaras municipais, departamentos regionais, exigem “n” licenças ao empresário. E ele fica 20 anos à espera e não consegue. Nenhum empresário vem para este país de loucos, que exige tudo e mais alguma coisa a quem quer ter iniciativa. Isto é um país em que as leis são deliberadamente complexas para fazer os empresários pagar tudo e mais algu oisa. E depois não lhes sobra capital para desenvolver o negócio. Isto é a nossa perdição.
Acha que isso existe mesmo para dar espaço à corrupção?
Sim, sim, também. E ao financiamento de partidos. É uma vergonha, quase ninguém fala disso. Quem olha de fora diz que o país tem muitas potencialidades, belos edifícios para fazer hotéis, empresas que resistiram… Quem vem de fora não tem de passar esta selva, as multinacionais que entram diretamente pelo governo, pelas chamadas vias verdes de investimento e contratando imediatamente os melhores escritórios de advogados do país, que lhes resolvem tudo no momento. Isto é um problema de regime gravíssimo. Nós olhamos para o BES, que é o exemplo mais flagrante e que foi investigado, e os outros? E os amigos dos BCP, e de outros bancos, e da própria Caixa, a quem foi dar crédito mas depois foi dado crédito ao lado para investir a quem se concedia o crédito, e quem estava associado?
Estamos a falar de que anos?
2000 a 2010, até à crise.
2008, portanto.
Não, não, 2010. Que em 2009 ainda se fizeram muitos disparates. Mas se formos mais atrás, antes de 2000, desde 1995/6 já começou a grande deriva. A grande concessão de crédito que houve foi mal orientada para atividades que não eram produtivas. Em 2011, 2012, a agricultura e as pescas tinham uma parte absolutamente residual do que era concessão de crédito. Como é que o país podia singrar? Bateu na parede com toda a força. E nessa altura, no ano de 2011, tive grandes conversas muito de choque. Na semana em que os banqueiros andaram a dizer que o Estado tinha de pedir ajuda externa, chamaram os jornalistas e tentaram convencer-nos de que eles, bancos, não tinham problema nenhum e que estavam mal porque a dívida pública estava a desvalorizar. E tive duas conversas em dois sítios diferentes, uma delas com Ricardo Salgado, numa conferência de imprensa que ele fez, que insistia que os bancos podiam vir a enfrentar dificuldades porque o Estado se tinha endividado. Só lhe observei: “Mas o senhor é que empurrou o Estado e os grandes empresários para a dívida, agora vem a dizer que o Estado é que tem a culpa? O Estado portou-se mal, mas vocês ainda se portaram pior, orientaram mal o crédito.” Terminou bastante mal a conversa.
Porque diz que o BES empurrou o Estado para a dívida?
Quanto do endividamento por causa das grandes obras foi feito por pressão dos banqueiros? Tudo o que tem a ver com parcerias público-privadas! Eram orientados os negócios no sentido de criar excesso de oferta quando, na verdade, o país não precisava dela. Temos centrais de energia paradas e nós a pagarmos. A eólica já satisfaz mais de metade das necessidades, nós estamos a pagar umas e outras, as que estão paradas e a trabalhar. Nós vemos uma REN interessada a fazer uma autoestrada para o Minho e para Huelva-Sevilha. Não são necessárias essas ligações, a REN só as quer fazer porque do capital investido tem garantido 8,5%. Não há negócio nenhum no mundo que tenha rentabilidade garantida de 8,5%. Aquele tem, por lei aprovada pelos deputados. Por isso, fazer mais linhas traz-lhes retorno garantido, mesmo que o país não precise dessas linhas. Tal como a energia eólica. A EDP continua a dizer que tem de se aprovar o resto dos projetos. Assim que aprovar, sabe que, produza ou não, aquilo vai sempre ter retorno. Quem fez estas construções absolutamente fictícias foi o parlamento, com base em legislação preparada pelos dez maiores escritórios do país. Quem financiou estes projetos, em vez de financiar os agricultores, a pesca e a agroindústria? Os banqueiros.
Qual a explicação para isso?
O banqueiro tem ou tinha o seguinte raciocínio: tem mil milhões de euros para emprestar. Aparece uma REN ou EDP que pede 500 milhões. Só precisam de fazer duas análises de crédito e emprestam 500 milhões a cada um. Não emprestam um milhão a cada um dos pequenos e médios empresários, por exemplo, porque não estão interessados, tinham de fazer análises de risco multiplicadas por mil. É muito mais cómodo para eles emprestar 500 a uma EDP, 500 a uma REN. É assim que tem funcionado o país. Os banqueiros portaram-se mal e depois empurraram tudo o que era organização económica do Estado e os recursos económicos e financeiros para setores mais especulativos. Deram cabo da sua própria saúde financeira, e agora estamos nós a salvá-los.
O que devia mudar-se no setor bancário? Nacionalizar alguns bancos?
Nunca privatizar a CGD. Tem de haver sempre um banco público, para marcar o compasso e não deixar politizar a gestão. Sempre que pensamos em quão mal esteve o setor a orientar a economia, podemos chegar à tentação de dizer que a esquerda tem razão, vamos tornar público tudo o que é banca e depois eles obedecem ao interesse coletivo. Não, alto aí! Então chocamos com uma realidade que a humanidade já viveu, em que toda a economia deve ser centrada e obedecer a uma direção central, como se fazia na União Soviética. Nem pensar. Temos é de melhorar o sistema de economia de mercado com base no sistema financeiro e aprender com os erros, e melhorar o funcionamento do modelo.
Defende esta entreajuda do Estado aos bancos basicamente falidos, como o caso do BPN, Montepio, BCP?
Cada caso é um caso. Ao contrário de muita gente, não defendo que se deveriam deixar cair bancos portugueses. Quando foi a nacionalização do BPN, disse sempre que naquelas circunstâncias de mercado não se poderia fazer outra coisa. Se tivesse sido nacionalizado o grupo SLN, isso é que era bem feito. Era um grupo de amigos que tinha um banco para os financiar. Tudo o que tinha passado pelo banco como recursos foi desviado para esse grupo, para os amigos usarem esse dinheiro e, portanto, devia era ter-se nacionalizado tudo. O PCP disse a mesma coisa ao fim de sete meses. Na altura calou–se tudo e ninguém disse nada. Foi um momento muito delicado para as nossas finanças públicas.
Comparando o BES com o BPN, qual foi a melhor solução adotada?
Manifestamente foi no BES, mas em 2008 ainda não havia leis de resolução. Aliás, a Europa evoluiu no sentido de perceber que tinham de criar alguma limitação à entrada de dinheiro do contribuinte. As primeiras grandes intervenções bancárias foram massivamente com a entrada de dinheiro do contribuinte. Houve uma alteração dessa abordagem que levou a um extremo. Não nos podemos esquecer da primeira aprovação de medidas para a banca de Chipre. Foi um fim de semana negro, entrou tudo em pânico. Na semana seguinte estavam a mudar a lei. Depois passou a vigorar a salvaguarda de depósitos a partir dos 100 mil euros. Isso resultou de uma atitude da chanceler alemã, que disse que tinha de haver um limite para as intervenções à custa do contribuinte. Portanto, ainda hoje continuo a pensar que foi melhor um processo de resolução para o BES do que a nacionalização, que teria sido um volume incomportável de dinheiro. Curiosamente, chegamos ao final de 2015 e aparece uma resolução do Banif em que as autoridades esconderam do contribuinte uma coisa muito simples. O que aparece nesta resolução com o custo de 3 mil milhões de euros para o contribuinte, no limite, somado aos 675 milhões da anterior intervenção, ode levar a que o contribuinte perca 3675 a 3680 milhões de euros. Ficámos todos surpreendidos. E quando eu faço a pergunta, o Banco de Portugal diz que o fundo de resolução, que na prática são todos os bancos que subscrevem, não podia entrar com mais de 5% dos ativos porque a lei foi alterada. Foi alterada nas costas dos cidadãos, há uns meses atrás. Volta a haver muita opacidade em relação ao que é o interesse do contribuinte.
Não defende, portanto, a nacionalização sempre…
Nacionalizar de todo é de evitar. Acho que o modelo atual interessa mais ao contribuinte do que quando havia simplesmente nacionalizações. Em relação ao setor financeiro, ainda estamos no início de um conjunto de mudanças profundas que vai levar a muitos sustos, nomeadamente na Europa. Conto-vos uma história. Há cerca de dois anos e meio, disse para quem quis ouvir: atenção, nós falamos muito das dificuldades da banca em Portugal, mas cuidado, que a Europa não resolveu os seus problemas. No coração da Europa, as coisas não estão resolvidas. Há dois anos e meio pedi atenção para o Deutsche Bank, que está cheio de exposição a derivados de crédito. Disse que aquilo um dia poderia ser muito complicado, no jornal da noite de sexta-feira. Sei que eram 9h30 da noite, ia a caminho de casa e toca o telefone. Era um responsável do banco em Portugal, indignado. Disse-lhe para ele ir ler o relatório de contas do grupo, estava tudo lá. Hoje temos o Deutsche Bank com pés de barro, como toda a gente vê.
É por isso que não diz às pessoas para depositarem o seu dinheiro em bancos estrangeiros, mas sim em portugueses?
Não é necessariamente isso. Podem depositar nos estrangeiros mas, se vão com a ideia de que estão a salvo, é um engano complicado. Qualquer depósito feito por portugueses em bancos estrangeiros, se são residentes cá e se houver uma saída do euro, o seu depósito é transformado em escudos novos como seria em qualquer banco português, portanto, é uma miragem. Aliás, pode ter um efeito muito perverso: iam todos os nossos bancos à falência. E os nossos bancos, agora, com as administrações que têm, são merecedores de crédito. As pessoas que estão neste momento em frente da banca em Portugal estão a corrigir os erros dos seus antecessores. Erros gravíssimos, de algumas pessoas que ainda continuam ligadas à banca. No sistema financeiro protegem-se muito uns aos outros.
Aponta como bom caminho aquilo que foi feito no governo de Passos…
Aponto como bom caminho aquilo que foi feito como redução em termos de receita e despesa.
Mas está a dar sugestões naquilo que chamamos austeridade de esquerda. Como é que se casam os dois?
Perfeitamente. Nunca ninguém me disse que é exclusivo da direita o rigor nas contas, pelo contrário. Houve governos de esquerda que geriram as contas do país de forma tão eficiente que saímos de crises profundas, nomeadamente Mário Soares em 1984, com Ernâni Lopes. Portanto, havia austeridade de esquerda. Naquele tempo também se faziam desvalorizações da moeda e era diferente. O melhor para o país são duas coisas: o Estado devia ter um excedente primário muito grande, que permitisse cobrir os juros da dívida nas receitas e despesas. A esquerda pode conseguir isso, desde que introduza medidas de poupança na despesa no Estado e de receita que, desejavelmente, não entrem em conflito com a atividade económica.
Só se pode poupar nas despesas de Estado cortando em ordenados e despedindo pessoas?
Não necessariamente. Se se fizer uma profunda auditoria aos bens e serviços que o Estado presta.
Com tanta confiança, quando é que avança para a política?
Eu já estou na política. O que estivemos aqui a fazer é um exercício de política.
Mas já disse que um dia gostava de entrar na política.
O que disse e reafirmo é que nunca excluía o dia de amanhã, que nunca ninguém o viu – a expressão é popular do país. Quem sabe se um dia surge um projeto necessariamente independente, com gente interessada, com provas dadas em termos profissionais, porque não? Mantenho essa posição, uma pessoa nunca fica toda a vida a fazer a mesma coisa. Tem de ser independente. Nunca me revi na máquina partidária de nenhum dos partidos. É uma cultura completamente diferente da minha, não me revejo naquele tipo de fidelidade e submissão de quem pertence àquelas máquinas.
E vota sempre em branco?
Não, isso não quer dizer que não tenha escolhas. Digo até que sempre votei útil e num leque muito mais variado do que muitas pessoas pensam.
O que pensa de Angela Merkel?
É das pessoas mais esclarecidas que existem na Europa. Tem as suas opções, um ministro das Finanças que às vezes devia ter juízo e podia falar de outra maneira. Mas a matriz alemã tem na sua essência o seguinte: produzir, para ter recursos para pagar a inovação, guardar alguma coisa e estar sólida para enfrentar as crises que surgem no mercado, para pagar as crises. Os EUA usam a política monetária porque são a primeira potência mas, verdadeiramente, aquela economia não produz o quanto gasta e vive acima das suas possibilidades. A matriz alemã é o contrário: à economia o que é da economia, à política monetária o que é da política monetária. Identifico-me plenamente com a matriz de Angela Merkel, que acha que emitir dinheiro, só em último recurso. Houve muita gente que sempre disse que a austeridade ia levar a uma espiral recessiva, a uma desgraça cada vez maior e ao desmembramento, primeiro, da zona euro, e depois da União Europeia. O euro está para ficar para muitas décadas ou séculos. Angela Merkel é uma figura que corresponde à ideia de que há líderes na Europa com visão a longo prazo. Tanto é que o euro não rebentou e a senhora surpreendeu toda a gente a acolher os refugiados que vinham da Síria, a fazer uma política que até é de esquerda.
Em relação à crise, qual acha que foi o papel do Banco de Portugal?
O anterior governador deixou descambar o modelo de canalização de recursos financeiros para a economia. Nunca foi capaz de dar um murro na mesa.
Está a falar de Vítor Constâncio?
Estou. Que depois foi premiado e foi para o BCE. Depois houve o problema do BPN, nacionalizado, e do BPP, entregue a uma gestão liquidatária. Aí sempre achei que o governador atual fez o que podia fazer, ao contrário de muita gente, que começou a falar do polícia quase como se fosse pior do que quem fez as asneiras, Ricardo Salgado. Ele tentou estagnar a contaminação do grupo em relação ao banco e, ao mesmo tempo, tentou forçar uma mudança da administração. Ricardo Salgado acabou por sair e foi este governador que forçou isso, muitas vezes sozinho. Ele, Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque recusaram que os grupos bancários que estão na orla do Estado emprestassem 2,5 mil milhões de euros ao grupo de Ricardo Salgado, que queria disfarçar os problemas com esse dinheiro. Foi o “não” que durante mais décadas há de soar na nossa memória coletiva. Teve essa prestação positiva, mas deveria ter posto a sua máquina de supervisão a perceber como é que houve uma descapitalização do BES que levou à queda; e como é que havia empréstimos ao BESA, que depois se revelou um saco roto em que foram perdidos quase 4 mil milhões de euros em empréstimos a quem nem sequer se sabia quem eram os titulares. Nessa parte andou menos menos bem. E andou mal naquilo que era a chamada supervisão comportamental: nem ele conseguiu resolver isso nem fez o que devia ter sido feito – ele, Carlos Costa. Ainda hoje há bancos que ligam para pessoas, que convencem pessoas quase iletradas a transformar depósitos em aplicações financeiras e produtos ou obrigações que podem vir a perder. Deutsche Bank, Santander, CGD, BCP, BPI, todos fizeram isso e ainda hoje têm uma parte disso. O Banco de Portugal é incapaz de proibir isso. Refugiam-se na CMVM dizendo que são eles que têm de avaliar estes comportamentos, quando está em causa a solidez do produto. Falharam e continuam a falhar.
Aconselharia as pessoas a investir em ouro e em dólares?
O meu tipo de conselho é deixar estar o dinheiro nos bancos portugueses.
Foi sempre assim?
Sim, quando temos as nossas convicções só temos a ganhar em segui-las.
Gosta do nome ministro-sombra?
Não, nem pensar. Sou um jornalista que faz perguntas e ousa dar umas respostas. A crítica mais construtiva que já ouvi foi de alguém que me disse que eu entrevistava, fazia notícias, trabalhava com as equipas e depois dava opinião. Isso não seria querer conciliar o inconciliável? Pode parecer, e fico sujeito à crítica por causa disso. Seguramente que não faço tudo bem e cometo erros. Mas como sou uma pessoa de convicções, e convenci-me de que há uma construção contra o interesse coletivo, digo para me provarem que estou errado. E cada vez tenho mais provas de que estou certo. Sou teimoso, já aconteceu situações em que eu não estava bem informado e acabei por admitir que não era bem assim. O meu erro mais célebre foi dizer que, se tivesse dinheiro, comprava ações do BES, ainda hoje me criticam por isso. Não quis enganar ninguém, na altura era a informação que tinha, disse que o banco estava sólido em 16 de julho de 2014. O Banco de Portugal continuava convencido de que o anel de proteção contra o grupo tinha funcionado, o banqueiro já tinha saído e o PR e o Ministério das Finanças e outros banqueiros achavam que o banco não tinha razões para não estar sólido. Errei estrondosamente porque tinha informação errada.
Houve muitos espetadores a queixarem-se?
Ainda hoje há pessoas que fazem isso, referindo o meu nome e o dos responsáveis, dizendo que foi por causa disso que houve um aumento de capital. É mentira, esse aumento foi em maio. Quem faz isso faz perniciosamente, mas enfim.
Está a pensar escrever outro livro?
Gostava de analisar melhor o sistema financeiro nacional e internacional, vou ser um curioso a escrever sobre isso. Já escrevi umas coisas, mas ainda está muito embrionário. Vamos ver.