O homem que um dia disse que nunca se engana e raramente tem dúvidas «decide uma estratégia e segue-a milimetricamente. Quando ele diz que ninguém o influencia, também está a dizer que a opinião pública não o influencia», argumenta António Pinto Leite. «Segue a sua ideia do interesse nacional e dela não se desvia. Só o vi preocupado com a popularidade quando esta era instrumental para vencer eleições», conta o social-democrata que esteve com a Nova Esperança, de Marcelo Rebelo de Sousa, Santana Lopes, Durão Barroso e José Miguel Júdice, o grupo que esteve na base da ascensão de Cavaco à liderança do PSD.
Marques Mendes, que foi ministro adjunto de Cavaco e seu conselheiro de Estado, entende que o PR é vítima do desgaste natural de quem exerceu o «poder durante um período invulgarmente longo». E também vítima de um tempo singular: Cavaco exerceu o segundo mandato «num tempo político especialmente difícil e provavelmente irrepetível». A assistência externa da troika, a recessão, o desemprego, os aumentos de impostos e a perda do poder de compra tiveram o seu efeito. Assim como a «crispação política invulgar» do pós-legislativas de 2015. «Circunstâncias políticas excepcionais conduzem inevitavelmente a desfechos excepcionais», conclui, compreensivo, Mendes.
Pinto Leite julga que alguns dos que mantêm ódios de estimação pelo PR cessante contribuíram para a perceção de que Cavaco não tem admiradores. «A esquerda partidária e a que intervém nos media nunca gostou» dele, por ser «o grande intruso na democracia ‘do 25 de Abril’, democracia que esta esquerda acha que lhe pertence». E a «direita, em sentido mais estrito, não gosta de Cavaco Silva porque ele não é de direita, nem cultural, nem ideológica, nem politicamente. É normal, parte da direita esperou de Cavaco Silva o que ele não era», diz o advogado.
Ninguém votou em Cavaco?
A esquerda não gosta do PR, é um lugar comum. Mas há um paradoxo, que Pinto Leite assinala. «O povo de esquerda largamente votou nele para lhe dar as grandes maiorias que ele obteve». E «essa esquerda gostava de Cavaco Silva». De resto, tinha razões para isso: como primeiro-ministro, Cavaco «foi o responsável pelo principal investimento no Estado Social desde o 25 de Abril». Uma das marcas do «político com maior influência da nossa democracia», sem colocar em causa o «papel fundacional de Mário Soares e Sá Carneiro».
Também Santana Lopes assinala a contradição de Cavaco não ter alegadamente apoiantes, quando obteve quatro maiorias absolutas com mais de 50% dos votos e ganhou três eleições legislativas e duas presidenciais. «Se chegarmos à conclusão de que a maioria do povo português se enganou durante vinte anos e cinco eleições em que deu a vitória» a Cavaco «então há muito para refletir», escreveu na sua coluna do CM.
Santana (que foi um mal-amado secretário de Estado da Cultura de Cavaco) considera-se «insuspeito para o defender ou elogiar»: «não votei nele em nenhum dos dois mandatos» presidenciais. Para fazer o balanço histórico da década em Belém será preciso «tempo e distância», conclui Santana, que também reconhece que os «tempos de crise profunda» prejudicaram a popularidade presidencial.
Por outro lado, o país teve sorte de ter este Presidente nesses tempos difíceis, considera Marques Mendes, devido «à forma talentosa como evitou, por mais do que uma vez, em plena intervenção da troika, o surgimento de crises políticas». Do primeiro mandato, Mendes destaca «a convergência estratégica», que produziu «resultados virtuosos» que ainda não se revelaram completamente.
Pinto Leite avalia-o em geral como um «excelente Presidente da República», que deixa a Marcelo «um legado mais incómodo do que parece». E considera que o «ponto mais forte dos seus mandatos» foi «a veemência com que alertou, dois anos antes, que Portugal caminhava para o abismo» – avisos desprezados pelo PS, resultando num «sofrimento social tremendo».
As principais qualidades de Cavaco são «a coragem, preparação e sentido de Estado», enumera Mendes. Em matéria de elogios, Pinto Leite chega aos nove: «integridade, sentido de Estado, sentido de liderança, racionalidade na ação e na decisão, previsibilidade, entusiasmo entusiasmante pelo bom que o país tem, vontade de ferro, competência e carisma».
E justifica o elogio superlativo («como político, não tem defeitos especiais», acrescenta) com os resultados eleitorais únicos que obteve. Conclui Pinto Leite: «Se todos os políticos fossem como Cavaco Silva, Portugal estaria entre os primeiros países da Europa».
As frustrações da década e a pedagogia para o futuro
O reverso da medalha de Cavaco Presidente é o seu «excessivo institucionalismo». «A crescente dessacralização do poder» não é «manifestamente, a praia» de Cavaco, assinala Marques Mendes.
Já Pinto Leite elege «a falta de experiência no setor privado» como um ponto negativo na longa carreira profissional de Cavaco Silva. Em Belém, o ponto mais fraco de Cavaco Silva «foi quando disse que havia limites para os sacrifícios dos portugueses», ignorando «o setor privado, para o qual não há, nunca há, limite para os sacrifícios», argumenta o ex-dirigente do PSD.
Mendes diz que o ponto baixo da passagem por Belém foi «seguramente a frustração resultante de não ter conseguido alcançar os consensos políticos que tanto advogou». Ainda assim, Cavaco terá tido «o mérito de semear a pedagogia que no futuro terá que dar frutos».
Um feito difícil de repetir
No resumo de uma carreira política que agora termina – depois de ter sido ministro das Finanças da AD, com Sá Carneiro, líder do PSD, primeiro-ministro e Presidente da República – Marques Mendes reforça que «dificilmente se repetirá no futuro» a soma de quatro vitórias eleitorais acima dos 50% de votos.
E salienta que, para o seu «inequívoco destaque na história democrática portuguesa», pesa muito a década em S. Bento: Cavaco «foi o político que, em 10 anos como chefe de Governo, maiores mudanças estruturais conseguiu empreender na sociedade portuguesa», conclui Marques Mendes.