O que é isto de ser mulher?

Dizem que não se pergunta a idade a uma senhora. Aliás, a uma mulher. Mas Hermínia, Marta e Mariana não veem porquê. “Não me ofendo que perguntem”, diz Mariana, provavelmente influenciada pelos seus 29 anos. “Até gosto”, acrescenta Marta, de 47.

É a diferença dos anos, da vida, das gerações. O que antes era e hoje deixou de ser. O que é hoje e nunca foi ontem. E hoje, a idade deixou de ser tabu, passou a ser orgulho. O que já se conseguiu atingir, a prova dos nove das vitórias e derrotas, os bancos da escola da vida que trocaram as contas às prioridades. E que fizeram com que as regras de ontem passassem a ser motivo de riso. “Conheço um padre que contava que um colega dele, velhote, perguntou a uma senhora: ‘Que idade tem?’ E a senhora respondeu: ‘Tenho uma idade em que era feio os homens perguntarem a idade às senhoras’”, recorda Hermínia, do alto dos seus 84 anos, provocando a gargalhada geral.

Hermínia, Marta e Mariana são três gerações da família Paiva. Entre elas correm anos de diferença, daquela matemática que os cartões de cidadão não deixam enganar. Mas correm também anos de diferença nos olhares, na forma como mandam na vida e a vida manda nelas. Na forma como são mulheres. “A idade, hoje, não se sente da mesma forma que se sentia antes. Quando eu nasci, a minha mãe tinha 39 anos e já a via como uma pessoa de idade, uma velha! Agora olho para o espelho e acho que estou conservadinha, e já tenho 47! Só um bocado gorda, mas também deixei de fumar”, dispara Marta, com um humor que se adivinha logo mordaz.

Marta é a segunda mais nova dos seis filhos de Hermínia. Mariana é sobrinha de Marta e neta de Hermínia. Conversa não é coisa que as assuste. São mulheres de encarar a vida de frente. E o discurso da mesma forma. De frente, que isto de ser mulher, de ser Paiva, não combina com ter medo das palavras. Nem daquela que todos tendemos a sussurrar: velha. Em país que não estima a idade nem o saber que a acompanha, velha virou insulto em vez de elogio. Mas não para estas mulheres a quem a vida ensinou que, se as gavetas do passado estiverem arrumadas, ser velha pode ser coisa boa. E motivo de gargalhada.

Os Paiva dividem-se por Lisboa, Lamego e Porto. Uma família católica, conservadora, em que os patriarcas tiveram seis filhos e 11 netos. Nos Natais, a mesa chega a somar 25 pessoas, entre avós, pais, filhos, netos, tios e primos. Estarão todos juntos, novamente, em maio, para um casamento. Mariana não definiu idade para casar, mas aconteceu que fosse antes de completar 30 anos. A vida foi correndo, encontrou a pessoa certa, tomaram a decisão e calhou que a data fosse a cerca de um mês da chegada dos 30 – mais tarde do que as gerações passadas, em linha com a sua própria geração. “Nunca me senti pressionada para casar antes dos 30 ou para ter filhos”, esclarece. “Mas sempre me fez sentido casar. Acho que também tem a ver com o facto de ter bons exemplos, como a minha avó e os meus pais. A família sempre fez muito sentido para mim e, por isso, casar era um passo necessário.” Apesar desta convicção, e dos bons exemplos, não fecha os olhos às estatísticas nem à forma como hoje em dia o casamento é encarado. “A mentalidade é completamente diferente, hoje só casa quem quer”, assume. “Antigamente éramos educadas para casar e ter filhos”, contrapõe a tia Marta. E para nunca desistir do casamento. “Tantas mulheres tinham vidas horrorosas, mas mantinham aqueles casamentos pela imagem. E por necessidade. As mulheres não trabalhavam e tinham de aguentar. Éramos dependentes. Mas também acho que, hoje, separar virou um pouco moda…”, diz Hermínia. Profundamente católica, viveu 54 anos com o mesmo homem, Carlos, o único que conheceu na vida, o pai dos seus filhos. De quem apenas se separou porque a morte a isso obrigou.

Marta pode ter sido influenciada pelo exemplo dos pais quando decidiu casar aos 23 anos. Mas a vida mostrou-lhe que nada é garantido. Com uma criança de seis meses nos braços, saiu de casa. Não era aquela a vida que queria para si. Preferiu o estigma de enfrentar uma família em que divórcio era palavra que não constava no vocabulário. “Tive um casamento um bocadinho contrariado, sobretudo pelos meus pais e, por isso, já um bocadinho coxo. Mesmo assim durou um ano e meio porque sou casmurra. Saí de casa quando o meu filho tinha seis meses, era um bebé. Senti um grande peso porque os meus pais estavam casados há 40 e tal anos, eu nem sabia o que era um divórcio”, recorda Marta.

Regressou a casa dos pais, com o filho ao colo e a culpa às costas. Sobretudo por ser católica. Esse sentimento (e a tal casmurrice), de resto, foi o que a fez lutar pelo casamento até ao limite. Para que não sentisse que tinha falhado. Os pais, os tais que viveram toda a vida juntos, apesar do choque, apoiaram-na. “Liguei ao meu pai e ele nem precisou de saber o que se passava, pegou no carro e na minha mãe e foram-me buscar. Sem o apoio deles, não sei o que me teria acontecido.” Marta regressou a casa dos pais, nos Olivais, em Lisboa, com as letrinhas “Div.” marcadas no bilhete de identidade. A única vez que se chateou com a mãe aconteceu após uma noite em que chegou mais tarde a casa. Hermínia disse-lhe que “não tinha condição” para estar na rua até à meia-noite. A condição divorciada, o tal “Div.”, não permitia essas ousadias. Marta viveu mais seis anos em casa dos pais e acabou por refazer a sua vida, vivendo há sete anos com o atual companheiro. Olha para trás com a tal sensação de gavetas arrumadas: “Não me arrependo de ter casado nem de me ter divorciado. Fazia tudo igual.”

Hermínia apoiou a filha inequivocamente, apesar de não ter sido essa a sua educação. Nem o seu exemplo. Viveu 54 anos com Carlos que recorda com um suspiro bipartido entre a saudade e o desejo, ao mesmo tempo que nos mostra uma foto. “Que bem que ele ficava de farda! Era tão bonitinho!”. Nunca lhe passou pela cabeça um divórcio. A relação que construiu e viveu tornou-se uma referência para toda a família. E as histórias sucedem-se, contadas em jantares de família ou em conversas a dois. “Ó avó, conta aquilo que me contaste no outro dia, de como te fez confusão a noite de núpcias porque nunca tinhas estado com o avô “, dispara Mariana, para logo de seguida desabafar: “O que seria eu casar sem nunca ter estado com o João e não saber como é que ele lava os dentes!”

Mas Hermínia é doutro tempo, daquele em que a mulher, para sair do país ou comprar um carro, precisava de uma autorização escrita do pai ou do marido, e chegar ao casamento sem ser virgem era impensável. E Hermínia cresceu numa família ainda mais conservadora do que o próprio país. “Namorei de 1950 a 1954 e nem dentro de casa dos meus pais podia estar sozinha com ele! Já não se usava, os outros namorados já podiam ir à rua passear ou ao cinema. Foi um namoro muito difícil, ele teve muita paciência”, conta a matriarca Paiva. “Os meus pais eram primos”, recorda Marta, “e o meu pai era visita permanente lá de casa, mas quando o meu avô cheirou que eles namoravam, ele nunca mais lá pôde ir sozinho!”

Carlos era funcionário do Ministério da Saúde e veio de Lamego para trabalhar. Sozinho na capital, ia todas as noites lá para casa, para estar com os primos. “E o amor aconteceu.” Hermínia ainda cora ao recordar aquela saída da missa em que Carlos a pediu em namoro. “Ficou nervosa, avó?”, pergunta Mariana. “Pedi-lhe para me deixar pensar! Uns tempos mais tarde, ele perguntou-me se já tinha pensado. Disse-lhe que já e que também queria.” Não pediu autorização aos pais e os melhores tempos de namoro foram mesmo os tais que aconteceram antes de o pai descobrir. Ainda assim, sem nunca fugir às regras da época.

Casaram no dia 29 de novembro de 1958, na Igreja Paroquial de Cascais, Hermínia de vestido branco e véu a cobrir o corredor nupcial. Foi o concretizar de um sonho. “Mas quando me vi com ele, sozinha numa casa, a ter de ir dormir com ele e etc… Vi-me aflita! Por causa dessa noite, o meu marido, quando queria brincar comigo, dizia sempre, ‘estou com um nervoso’, porque foi o que eu disse na noite de núpcias. Era muito difícil uma mulher entregar assim o corpo.” A dificuldade vinha da forma como a sociedade, naturalmente, castrava as mulheres, como a sua condição era menosprezada e até pela forma como a Igreja se impunha na afirmação feminina. Mesmo em casos como o de Hermínia, a quem um confessor disse, no dia do casamento, “amanhã faz favor de ir à missa e comungar porque esta noite não vai fazer nenhum pecado”. É que, naquela altura, “o sexo era um pecado”.

A libertação do prazer sexual feminino é uma longa e sinuosa estrada. A vida passa, as gerações mudam, mas há fantasmas que não desaparecem. Os mesmos que fazem com que Marta assuma que “o sexo, hoje em dia, é algo normal”, mas que ao mesmo tempo diga: “A pior coisa que há é a minha mãe falar do sexo que tinha com o meu pai. E falava! Era um horror! Pai e mãe não têm sexo!” Sexo ainda é tabu. Prazer ainda é tabu. Desejo ainda é tabu. Sobretudo para as mulheres. Este “sobretudo”, ainda que de forma inconsciente e incontrolável, é muitas vezes promovido pelas próprias mulheres. “Há uns anos, quando o meu filho foi pela primeira vez acampar, disse-lhe para não se esquecer dos preservativos. Mas se sei que a minha enteada vai dormir com o namorado, faz-me imensa confusão. Não me pergunte porquê que não sei responder, mas faz. Nem quero saber”, desabafa Marta. A forma como olhamos homens e mulheres é diferente. E, por vezes, a primeira diferença vem das próprias mulheres, que se autopunem com preconceito. “Ai, continua a haver tantas diferenças entre os homens e nós…”, diz Hermínia, com uma sabedoria que os 84 anos tornam inquestionável. “Eu não sinto, avó. Nunca me senti menos que um homem ou que tivesse atingido menos coisas por ser mulher. Nem na escola, nem na faculdade, nem no trabalho. Nunca me senti ultrapassada por um homem”, afiança Mariana, advogada, atualmente a trabalhar numa das mais importantes sociedades de advogados do país. Marta garante que também nunca sentiu essa diferença, até porque se dedicou sempre à área do secretariado, tradicionalmente dominada pelas mulheres. “Mas sinto é que, nos lugares de chefia, as mulheres são mais sacrificadas do que os homens. Ou têm mais medo. No banco noto isso.”

Hermínia nunca sentiu estas diferenças porque nunca trabalhou. “Fora, que em casa trabalha-se e muito”, dispara. Quando casou, e antes de engravidar a primeira vez, que aconteceu logo passados três meses, disse ao marido que queria ir trabalhar. Ele respondeu “só se for preciso, por enquanto não”. Entretanto vieram os filhos, seis. E nunca chegou a ir trabalhar. Quando a filha mais nova já tinha 13 anos, começou a colaborar com a paróquia local, mas sem receber.

Para Mariana, a poucos meses de casar e apesar do desejo de ser mãe, a ideia de ter seis filhos parece algo ficcionado. Tal como lhe parece ficcionado não trabalhar. “Ter filhos, hoje, pesa mais. Pensamos se vamos ter dinheiro, se o trabalho permitirá. Porque eu não conseguiria deixar de trabalhar. Trabalhar menos, admito que sim. Agora, deixar de trabalhar e dedicar-me apenas aos filhos seria impensável. Acho que diminui uma mulher. A avó nunca se sentiu diminuída por não trabalhar e estar dependente do avô?”, pergunta Mariana. “Só quando não tinha dinheiro e tinha de lho pedir. Quando tinha de lhe dizer para me dar dinheiro custava-me tanto… Mas não me sentia diminuída. Tomei conta de seis filhos, dos netos, da casa, fiz muitos rissóis para fora, pastéis de bacalhau, molotofs…” Seguiu à risca as recomendações da sua mãe: “cama feita, mulher penteada, casa arrumada”. E não só. “A minha mãe também sempre me recomendou que nunca dissesse ao meu marido que estava cansada, que me arranjasse sempre e que nunca fizesse nenhum serviço da casa ajoelhada no chão em frente ao meu marido”, recorda Hermínia. “Ouviste, Mariana?”, provoca a tia Marta, enquanto assume que ainda no domingo passado tinha ficado de pijama o dia todo. “Ouvi, tia, e até acho que há uma ponta de sabedoria nisto. Só que agora achamos que não são só responsabilidades da mulher, o marido também tem de as seguir.” O desequilíbrio entre sexos está progressivamente mais ténue, mas ainda há tarefas que achamos que são tradicionalmente das mulheres. E muitas vezes são as próprias mulheres que chamam essas tarefas para si.

Ainda assim, cada vez mais olhamos para uma mulher que concilia filhos e carreira como sendo uma supermulher, e olhamos para mulheres como Hermínia, que se dedicaram a construir um lar, como mulheres menores. Parece que não lhes reconhecemos a luta, o esforço, a forma como forjaram gerações. Mas essas mesmas mulheres, como Hermínia, também devolvem o olhar. Olham para mulheres como Marta, com apenas um filho, ou Mariana, ainda sem filhos à beira dos 30 anos, com estranheza. Ou, em casos como Hermínia, cuja doçura está espelhada nos olhos cristalinos, com “pena”. Não que ache que uma mulher só se complete com a maternidade, que só assim se cumpra a condição feminina, mas porque ter filhos é “do melhor que há, só há uma coisa melhor: ser avó”, diz, ao mesmo tempo que recua no tempo e recorda que, ao quarto filho, começou a assustar-se e que, por vezes, teve vontade de se ver livre da filharada toda. “Uma vez, a minha mãe até disse ao meu pai ‘vê lá se a rapariga está maluca’. Tudo porque eu telefonei a dizer que já não podia aturar mais os meus filhos e que me tinha apetecido atirar um deles pelas escadas baixo.”

Em 2013 morreu o avô Carlos. Basta falar neste assunto para o semblante de Hermínia, até então sempre luminoso, se alterar. “Não me lembro do velório nem do funeral, não me lembro de nada.” Os olhares de Marta e de Mariana também se enevoam. Na dor não há diferenças de sexo ou de geração. Anos antes de perder o marido, Hermínia combinou com Carlos que iriam para um lar, “para nos habituarmos, e assim, quando o outro faltasse, o que ficasse já estava habituado ao lar e não dávamos trabalho aos filhos”. Quando acharam que tinha chegado a hora, instalaram-se num lar nos arredores de Lisboa. Ficaram 11 meses, mas a doença de Carlos fez com que começasse a dizer que queria morrer em casa. “Eu não queria, até tive uma depressão. Mas fomos para casa, como ele queria. Fui fazer-lhe a vontade.” Quando Carlos morreu, Hermínia arrumou as malas e regressou ao lar. Avó moderna, com Facebook, tem dias em que as saudades são tantas que as lágrimas não têm travão. “Mas sou muito devota e acho que Deus está comigo. Sinto-me feliz.” Uma felicidade que é transversal às três e imune a crises geracionais. É que a felicidade é como a dor. Não tem sexo.