O seu primeiro treinador no Ajax, chamou-lhe «uma dádiva de Deus ao futebol». Vic Buckingham parecia prever o que aí vinha. Em 2008, Pep Guardiola, poucas horas depois de tomar conta do cargo de treinador principal do Barcelona, o outro amor de Cruyff, explicou a génese da sua equipa: «Cruyff pintou a Capela Sistina, a nossa missão é mantê-la e restaurá-la». O holandês Arthur van den Boogaard, autor de livros sobre futebol, defende que Cruyff descobriu a «solução metafísica» do jogo.
Os admiradores de Cruyff não se limitam a adorá-lo ou a venerar as suas equipas e a maneira como estas jogam. Eles acreditam que o mundo pode ser um lugar melhor se a sua visão prevalecer. O cruyffismo e a sua profecia, sentem, tornam o futebol mais belo, divertido e espiritual do que as outras abordagens.
A sua carreira no futebol foi uma viagem longa e desafiadora, durante a qual sofreu muitas e grandes provas — e devolveu na mesma moeda, com alegrias e bênçãos, incluindo títulos, 14 campeonatos, e com isso obteve a gratidão do planeta com essa iluminação que foi o Campeonato do Mundo de 1974. Acabaria por perder a final para a Alemanha, mas na memória ficou sempre o «futebol total» dessa «Laranja Mecânica» que tinha marca de autor. A sua. «Se tivéssemos ganho, talvez ninguém falasse dessa final e da perfeição do futebol que praticámos. As lendas também podem alimentar-se de uma derrota», disse sempre que lhe perguntaram sobre esse jogo.
Em 1978 faltaria ao Mundial na Argentina. Recusou participar num torneio assombrado pela ditadura militar de Videla, mas contaria mais tarde que um assalto à sua casa em Barcelona tinha também pesado na decisão. Não queria misturas, era adepto de um futebol puro. A Holanda voltaria a perder a final para o anfitrião (3-1), mas as suas ideias (e as de Rinus Michels) estavam lá. «Prefiro perder um jogo do que abdicar das minhas ideias», disse Guardiola depois de uma derrota. Percebeu-se quem estava a citar naquele momento.
Cruyff jogaria mais três anos ao mais alto nível e inspiraria uma geração de futuras estrelas como Marco van Basten, Ronald Koeman ou Dennis Bergkamp. Depois disso, como treinador, fundou duas escolas: primeiro no Ajax, a seguir no Barcelona. Foi o último toque na Capela Sistina: antes dele no Barça, o clube tinha vencido 42 títulos em 71 anos – depois dele, 42 troféus em 27 anos.
Cruyff alimentou-se do futebol com golos (392) e jogos (520) numa carreira de 19 anos enquanto jogador – mas a sua influência foi mais vasta do que as vitórias e as jogadas. Foi um líder, um pensador e comunicador nato. Como treinador venceu 242 encontros, empatou 75 e perdeu 70. E fez disso tudo um triunfo, uma glória. Instalou-se nela, na glória, como contou Jorge Valdano. «Não houve nenhum jogador que tenha tido tanto êxito enquanto futebolista e treinador. Está na mesa histórica dos quatro: Di Stéfano, Pelé, Cruyff e Maradona… E como treinador é algo mais do que um vencedor: é uma referência, a personificação de uma escola a que, de todas, a Espanha deve ser a mais agradecida», conta Valdano, o avançado argentino campeão mundial ao lado de Maradona em 1986. E Espanha, na hora do adeus, não esqueceu o seu grande mentor. Despediu-se com a dor de um dos seus, neste holandês tornado catalão. Tal com o fez o Ajax e o Barcelona, todos beneficiários do seu futebol cerebral.
«O futebol joga-se com a cabeça, as pernas estão lá para ajudar», disse um dia. Meio caminho andado para o futebol total – esse «totaalvoetbal». A cabeça e tudo o que gira à volta dela. Cruyff sempre pensou diferente e provou isso durante a sua passagem como treinador pelo Barça, entre 1988 e 1996: utilizou a velocidade, o espaço e a fluidez tática que ele e Rinus Michels, o seu treinador no Ajax, souberam coser e transformar uma equipa moribunda num legado que ainda hoje dura.
Deixou um legado, conseguiu que a sua filosofia – «Os meus avançado só devem correr 15 metros, a não ser que sejam estúpidos ou estejam a dormir» – se tornasse no cânone do futebol atual. Chegou aos títulos a partir da estética. Aquele golo à karateca frente ao Atlético de Madrid é considerado o mais belo na sua carreira. O penálti indireto com o Ajax que tornou famoso em 1982 teve recentemente uma homenagem – quando Messi o emulou no passado 14 de fevereiro, ao passar a bola para Suárez na marcação da grande penalidade frente ao Celta. O holandês emocionou-se, naquela que foi uma das suas últimas frases públicas: «Deu-me muita alegria aquilo que Messi fez. Só ele podia fazer aquilo». No Barça, capitão e a bater um penálti assim, era apenas mais um legado em Camp Nou da sua lavra. Chamaram-lhe falta de respeito. «Como assim? O futebol é para nos divertirmos», respondeu Cruyff.
De repente o mundo está cheio de apóstolos do cruyffismo e no Barça não pararam de dar voltas à sua ideia de jogo, que alcançou o cume na conquista em Wembley da Taça dos Campeões em 1992 com Koeman e o futebol total ganharia um nome mais anglófono: Dream Team. Guardiola é o seu mais fiel discípulo. Luis Enrique é apenas o último a chegar.
«Com o seu futebol estava no coração de uma revolução. Se quisesse, podia ser o melhor jogador em qualquer posição no campo», disse Eric Cantona. De gola levantada, com o respeitinho que se deve ter quando se fala de Cruyff. Isso e nunca o tratar por tu, como o disse a Valdano durante um jogo quando, debaixo do braço, mantinha a bola segura. «A Johan Cruyff se le trata de usted [trata-se por você]».