O livro-bomba

A única ideia animadora a extrair do recente julgamento político em Angola é a de que um livro pode inquietar, transformar mentalidades e ser um instrumento de mudança.

Num mundo em que se quer fazer desaparecer o hábito da leitura – só pode ser esse o objetivo da campanha tonitruante “os livros não se vendem”, de que tanto suposto intelectual se faz mensageiro -, este é um acontecimento relevante.

Junto das 17 pessoas presas em Angola não se encontrou uma espingarda, uma bala, nem sequer um canivete – apenas um livro, que estava a ser debatido. A gravação vídeo desse encontro mostra um grupo de pessoas a pensar em voz alta sobre formas de trazer para a rua as ideias desse livro, intitulado Da Ditadura à Democracia, entusiasmando a população a exigir justiça social e política.

As palavras “manifestação pacífica” são repetidas incessantemente ao longo da conversa. As pessoas que lêem livros têm a convicção de que é a força das ideias que faz avançar o mundo – não a das armas.

O tribunal angolano classificou uma conversa entre jovens ao redor de um livro como “atos preparatórios de rebelião e associação de malfeitores”, e condenou os participantes a penas entre 2 e 8 anos de prisão.

Os grupos parlamentares do PSD, do CDS e do PCP recusaram-se a subscrever os votos de lamento do PS e de condenação do Bloco de Esquerda. A almofada da ‘não-ingerência’, adereço indispensável dos confortáveis sofás dos negócios internacionais, serviu de respaldo à recusa destes parlamentares.

Já o Presidente da República e o primeiro-ministro usaram a tradição agrícola da diplomacia à portuguesa, feita de longos pousios e lenta fé no clima, e disseram esperar pela ‘tramitação’ judicial; entretanto, os condenados vegetam no terreno agreste das prisões desprovidas de condições básicas de higiene ou mesmo, em alguns casos, de colchões.

Um deles esteve em greve da fome, como protesto pelo congelamento da sua conta bancária, que arrasta a família para a miséria, bem como pelo arresto dos seus bens pessoais, incluindo o computador.

As autoridades alegam que o computador é necessário para “a investigação”, assumindo que, depois de presas e condenadas, as pessoas continuam a ser investigadas.

A originalidade imprevisível do sistema judicial angolano é muito eficiente a criar medo, e o medo tem a enorme vantagem de paralisar os seres humanos; assim, muitos familiares dos agora condenados abandonaram-nos. Desconhecem certamente A Indiferença, um poema em que Brecht explica: primeiro levaram os comunistas, em seguida os operários, depois os sindicalistas, os padres… mas como o narrador do poema não era nenhuma dessas coisas, não se incomodou. Até que o levaram a ele: “E quando percebi/ já era tarde”.

O escritor húngaro Imre Kertézs, prémio Nobel da Literatura em 2002, que morreu no passado dia 31 , dizia que a preocupação central dos seus livros era a de descrever “o homem funcional”, isto é: o modo como um amigo se transforma tranquilamente em inimigo, por ordem de alguém com poder. Kertész foi levado para o campo de concentração de Auschwitz, e em seguida transferido para Buchenwald, aos 14 anos de idade.

Era um sobrevivente do Holocausto, o que significa que experimentou na pele o grau zero da humanidade, aquele em que pessoas olham para outras pessoas como objetos a utilizar ou destruir.

Sempre que alguém acusa outrem de não separar o pessoal do político – moda maquiavélica muito em voga – torna-se cúmplice dessa visão em que os fins justificam os meios, ou os interesses se sobrepõem à justiça.

Estaline começou por apagar das fotografias e assassinar os íntimos camaradas de luta que o criticavam, e acabou a matar mais de 20 milhões de cidadãos da União Soviética.

O ‘pessoal’ é sempre ‘político’: nenhuma infâmia é circunscrita.

17 pessoas foram presas por debater a democracia em Angola. Na Coreia do Norte, um jovem turista de 21 anos foi condenado a 15 anos de trabalhos forçados por tentar ‘roubar’ um cartaz. Qualquer um de nós podia estar no lugar de qualquer uma destas 18 pessoas. Continuariam os senhores deputados do CDS, PSD e PCP a pensar que não era caso para ingerência, se entre estas pessoas se encontrassem elementos das suas famílias? O senhor presidente da República e o senhor primeiro-ministro aguardariam serenamente a evolução dos trâmites jurídicos se um destes jovens fosse seu filho? A política começa ou acaba na resposta a estas perguntas.              

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