‘Gostaria que houvesse um só país, a Ibéria’

Javier Martín está em Lisboa há menos de dois anos, mas teve sorte com a época em que saiu de Espanha pela primeira vez para ser correspondente num país estrangeiro – a sua carreira jornalística, iniciada nos alvores dos anos 80, já é longa. «Contigo descobrimos Portugal», disseram-lhe amigos e colegas. Começou a escrever sobre…

«Antes chineses ou angolanos que espanhóis», colocou em título. «Oreceio ante a presença espanhola em todos os campos avança na sociedade portuguesa», observou, referindo-se ao Manifesto («populista») dos 50 como a última «iniciativa contra os interesses económicos espanhóis em Portugal». Deixou um reparo «ao absoluto silêncio da diplomacia espanhola» perante episódios como o dos ataques de Rui Moreira, o presidente da Câmara do Porto, ao aeroporto de Vigo. 

Registou ainda que, «por parte das instituições portuguesas [não se ouve] nem uma palavra de agradecimento pela confiança do capital espanhol no desenvolvimento de Portugal», nem tão pouco «preocupação alguma por a rede elétrica ser chinesa ou muitos meios de comunicação angolanos».

Agora, sentados na esplanada do ‘Careca’, uma das pastelarias mais afamadas de Lisboa, e depois de coincidirmos no pedido dos croissants que lhe dão fama, voltamos ao tema. Pergunto se lhe é difícil perceber que prefiramos os chineses ou os angolanos, e se vê nisso um complexo de um povo que já sentiu o domínio espanhol. Começa a resposta falando de um outro tema que agita a opinião pública, em matéria de nacionalismo económico: a TAP.

‘Preferem o dinheiro de Angola, que não paga dividendos’

 «Eu não percebo a preocupação pela privatização da TAP, num país – como todos os da Europa e a Espanha não é diferente – onde não temos dinheiro para o básico, para a saúde e educação…  Até parece que os bilhetes [de avião da TAP]  são grátis». Com a banca, diz, é talvez mais difícil de perceber. 

«O problema é que não há outro dinheiro, então é caso para dizer ‘Bem-vindo o dinheiro espanhol!’. Preferir o dinheiro de Angola, que não pagou  dividendos à PT desde há dois anos,  e que agora descobrimos que não paga os dividendo do Banco de Fomento ao BPI? Que, com uma posição minoritária, domina toda a banca privada portuguesa? Que está fora da Europa e agora o Banco de Angola tem de aprovar a OPA ao BPI? Estamos loucos!», ri-se. Mas percebe o nosso medo histórico. 

Javier vem de um país em que várias regiões batem o pé ao domínio de Madrid e nasceu em Navarra, um ex-reino que integra a definição histórico-cultural do País Basco. «É muito surpreendente para mim, como espanhol, as vezes que na televisão se pronuncia a palavra Portugal. Em Espanha nunca se diz Espanha, diz-se ‘o Estado espanhol’. Como se Espanha se identificasse com a ditadura. E há outros traumas,  a bandeira, e o hino espanhol não se ouve. Aqui o PCP entoa o hino português no final dos comícios. Há esse nacionalismo».

Javier casou com uma catalã, Rosa Cullell Muniesa, que é diretora-geral da Media Capital, a proprietária da TVI. Foi o emprego da mulher que o trouxe para Lisboa, mas antes disso viveu duas décadas na Catalunha e assistiu à sua afirmação política. Elogia o «brilhantismo» de Pasqual Maragall, o alcaide de Barcelona e presidente do governo autonómico da Catalunha, mas não é um fã de nacionalismos exacerbados. «Perde-se muita energia com coisas que não valem nada» na Catalunha, diz. Para Javier, «é o bolso, não o coração» dos regionalistas que motivam os arroubos dos vários regionalismos contra Madrid. 

Depois de refletir, Javier dá uma resposta final sobre os nacionalismos de Portugal e Espanha.  «Eu gostaria que houvesse um só país, a Ibéria. Teríamos algum futuro. Ainda gostaria mais se a Europa fosse um só país – com uma fronteira, um sistema fiscal único e os papéis de Bruxelas em inglês e não em 14 idiomas».

A vida em Portugal corre-lhe bem e tenciona ficar mais uns anos. Com exceção do hábito português de estacionar carros em cima dos passeios  – que faz de Lisboa «a pior capital europeia em acessibilidade» –, elogia-nos. Gosta do clima, da simpatia do povo e da tranquilidade geral e da calma do Restelo em particular. Mudou-se para este bairro há ano e meio, depois de concluir que o Chiado tem barulho a mais, culpa do surto de hotéis e de atividade turística constante.

Gosta de quietude, mas diz que  como em qualquer virtude há o lado negativo. Um exemplo, que nos faz voltar a falar da banca: «A nova lei dos bancos [que termina com a blindagem de votos] tinha de já estar feita há muito tempo, é uma blindagem dos diretivos contra os acionistas».

Lopetegui? Nunca acreditou

Ex-treinador de futebol, em equipas de jovens, Javier Martín continua a ser um apaixonado pelo jogo. Recorda uma história antiga que o trouxe pela primeira vez a Lisboa e que ilustra bem a sua afición: em 1981, altura em que não havia internet nem telemóveis, atravessou a fronteira de comboio para não ter de enfrentar os nervos no último e decisivo jogo do campeonato espanhol. A Real Sociedad conseguiu o empate nos últimos minutos, e sagrou-se campeã pela primeira vez, mas o ansioso Javier só soube quando o seu comboio chegou a Espanha, já era noite.

Em Portugal, gosta do Sporting de Jesus, torce o nariz ao Benfica, e diz que nunca acreditou no seu conterrâneo Julen Lopetegui, que o F.C. Porto despediu de treinador em janeiro. «Não era culpa dele, era a mudança de estilo num clube com futebol aguerrido para o ‘tiqui-taca’, mas sem jogadores, num sistema em que os melhores são vendidos no final do ano».

‘Tiqui-taca’, futebol curto, não é com ele: «Para quê 27 passes quando se pode fazer um golo só com três?». Gosta da raça de Ronaldo, do seu esforço pela perfeição, diz que forma a melhor dupla de jogadores de sempre com Messi. Percebe que Ronaldo, um vencedor em Espanha, atenue o nosso complexo de país dominado, mas em Espanha Ronaldo «não é compreendido»: a sua personalidade «orgulhosa, arrogante», como também era a de Mourinho, «não cai bem». Messi? «É pequenito, é feitio… podíamos ser como ele», ri-se.

Gostos à parte, sabe do que fala. Escreveu anos a fio sobre futebol, cobriu o Mundial de Espanha, em 1982, o Europeu de França. Escreveu também sobre tecnologias (fundou em 1998 o suplemento Cíber País), temas de sociedade, política, também, claro, embora dispense o género. «Eu o que menos gosto é de escrever sobre política», confessa. 

«Os jornalistas políticos são os mais importantes nos jornais, mas para mim fazem o mais fácil. Escrevem prognósticos, comentários, com fontes sem nome e quando um político declara algo vendem o anúncio de marketing», resume. E, há ainda os comentadores que se fartam de errar previsões. Os comentadores não acertaram na formação de uma maioria de esquerda após a derrota de António Costa nas legislativas – ele também não, reconhece. E até foi acusado de ‘direitista’ por um leitor do El País.

Costa é González e Marcelo parece um 1º-ministro ‘bis’

Tem escrito sobre a ‘geringonça‘, mas diz que a curiosidade espanhola pela nossa inédita solução política «já foi maior». Em Espanha, será difícil ter um governo assim – porque «Costa é experiente e hábil», o PSOE não é a mesma coisa e há partidos autonómicos a complicar. Oelogio a Costa estende-se: «É um grande político, comparo-o com Felipe González». Acompanhou a vitória sobre Seguro nas eleições internas do PS, viu-o agarrar o governo depois de umas legislativas perdidas, «tem um sucesso total», argumenta. As presidenciais? «Mas teria vida mais fácil com Sampaio da Nóvoa?», dispara. 

Temos de falar, claro, de Marcelo. «É diferente de tudo. É o mais original, atrativo, fez uma campanha perfeita, insisti muito para que se escrevesse sobre ele». Conta como o entrevistou durante um voo para a Madeira, encontrando-o num bar do aeroporto, sozinho «sem um assessor, a jantar três iogurtes». 

O fascínio pelo novo Presidente da República não vem sem reparos. «Agora, parece um ‘primeiro-ministro ‘bis’», critica. Marcelo, «não precisa de falar três vezes por dia», isso é «perigoso para a instituição», refere, recordando, divertido, o episódio em que o PRdivulgou, sem querer, a nomeação de Elisa Ferreira para o Banco de Portugal. Também não gostou do seu discurso na promulgação do Orçamento do Estado: «Foi muito básico, parecia de um professor primário».

Marcelo é «um filão» jornalístico, é certo, mas Portugal ainda tem outras originalidades políticas, na opinião do correspondente do El País. Há Passos Coelho, um ex-primeiro-ministro na oposição, à espera de o voltar a ser. Javier ri-se. «Não sei se isso alguma vez já aconteceu».