Aos 48 anos, Domingos Amaral dá aulas de Economia do Desporto na Universidade Católica, participa no programa Irritações, da SIC Radical, e tem onze romances publicados. O último é “A Vitória do Imperador” (ed. casa das Letras), a segunda parte da trilogia “Assim Nasceu Portugal”, sobre D. Afonso Henriques e a fundação da nacionalidade.
Benfiquista de alma e coração, Domingos Amaral começou a ir ao futebol com o tio, precisamente ao estádio D. Afonso Henriques, do Vitória de Guimarães. Atualmente tem lugar cativo na Luz, onde assiste aos jogos na companhia de Duarte, o único rapaz dos seus quatro filhos.
Imagino que escrever um livro de 400 páginas já dê muito trabalho. Três, então, deve ser uma tarefa colossal…
Há que fazer muita pesquisa histórica. Não só sobre as coisas mais conhecidas, como a vida de D. Afonso Henriques – as conquistas, as batalhas, os tratados -, mas sobretudo sobre os costumes da época. Como as pessoas viviam, como se vestiam, como comiam, como namoravam.
Recordo-me de um filme em que aparecia um relógio de pulso digital numa personagem do império romano. Escrever um romance histórico exige uma atenção constante para não cometer esses erros?
Temos de ter essa preocupação. Por falar do relógio: eles não viviam o tempo como nós, em horas e minutos. Isso não existia. O dia dividia-se mais ou menos em quatro horas diferentes. Toda a cabeça das pessoas funcionava de outra maneira, por isso não podemos pôr personagens dessa época a raciocinar como nós. Mas do ponto de vista das emoções, os seres humanos não mudaram muito. Têm ciúmes, têm raiva, têm alegrias, têm ambições e expectativas. Só há uma coisa completamente diferente da nossa vida, que é a noção de que podiam morrer a qualquer momento.
E em termos de costumes?
Nesta época da Idade Média a relação entre homens e mulheres era mais solta do que muitas vezes achamos. Dentro ou fora do casamento, eles tinham casos, amantes, praticava-se a coisa com muita facilidade. Os muçulmanos estavam perfeitamente habituados a ter haréns e várias mulheres. Apesar de haver algum discurso religioso, não era uma sociedade tão moralista quanto poderíamos pensar. Acho que o sexo e a violência são duas coisas características daquela época.
Houve outros aspetos do quotidiano que lhe chamassem a atenção?
Há coisas curiosas. Por exemplo, num jantar ou numa ceia as pessoas comiam a sopa duas a duas. Punha-se uma tigela de barro e cada uma com a sua colher tirava da mesma sopa. Outra coisa muito gira é que não tinham pratos, usavam um ‘prato’ de pão, uma espécie de pizza, e depois metiam-lhe a carne, as batatas em cima e comiam dali. De resto, a alimentação nas zonas cristãs era bastante parecida com a que hoje temos. Comiam tudo: peixe, marisco, vários tipos de carnes – javali, caça, aves, vaca, porco, peru, frango, mas também carne de urso, que hoje já não existe.
Naquela época parte do território estava sob domínio muçulmano. Teve de estudar essa cultura?
Se fazemos a descrição de uma casa mourisca, por exemplo, é bom que seja fidedigna. A civilização muçulmana era mais avançada do que a cristã. Eles liam, faziam contas, escreviam poesia. O D. Afonso Henriques nunca leu na vida – nem escrever sabia, assinava sempre de cruz. Sobretudo nas classes mais altas os árabes era mais cultos e educados, mais higiénicos – tomavam banho todos os dias, coisa que os cristãos não faziam. A gastronomia islâmica era fantástica, tinha muitas coisas que nós hoje comemos e nem damos por isso.
Por exemplo?
Queijadas, arroz doce, escabeche, o arroz praticamente todo, o açúcar, legumes, tudo isso já era usado por eles.
No seu livro aparecem muitas relações entre cristãos e mouros. Não era suposto estarem em guerra?
É um facto que se vivia um movimento de reconquista, mas ao nível da população havia bastante tolerância. Por exemplo, depois da conquista de Lisboa não há nenhuma chacina. Nada. Os muçulmanos são bem recebidos na vida da cidade e integrados. Mas mesmo ao nível das cúpulas político-militares, tanto o Afonso Henriques como o Henrique VII, o primo direito dele e imperador, faziam imensos pactos com os mouros e tinham muitas ligações a certas famílias islâmicas. O avô de ambos, o imperador Afonso VI, casou com uma senhora moura, uma princesa de Sevilha. E também se dizia que na corte de D. Afonso Henriques havia uma princesa moura com quem ele tinha umas relações.
Aliás, o seu livro explora bastante as relações de D. Afonso Henriques com várias mulheres.
Há uma coisa que me faz impressão: a pouca importância que se dá à vida amorosa de D. Afonso Henriques. Há muito poucas referências mas acho que as mulheres tiveram muita importância nas várias fases da vida dele. Não apenas as mulheres que ele amou ou de quem teve filhos, mas também outras que foram importantes na educação dos filhos, por exemplo. D. Afonso Henriques casa-se bastante tarde, mas antes já tinha tido filhos de duas ou três mulheres. Uma delas é a grande paixão da vida dele, a Chamoa Gomes, que era filha de uma família nobre de Tui e de quem ele teve dois filhos, incluindo o primeiro rapaz. Chamoa merece duas ou três linhas numa biografia. Isto é transformar uma personagem que foi com certeza muito importante na vida dele em alguém que não passa de uma nota de rodapé.
A História ainda é muito escrita no masculino?
Sim. E mesmo para a tornar mais interessante para os leitores de hoje acho que faz falta essa parte. Nenhum historiador fala sobre o facto de ele ter tido onze filhos. Isso não é normal. Na vida de um homem, não é só conquistar cidades que é importante.
Era comum os filhos estarem com ele ou viviam afastados?
Julgo que ele estava quase sempre rodeado de crianças. E esse é um dos aspetos em que a imagem dada pelos historiadores não me parece muito correta. Além dos filhos, ainda havia os filhos das amantes, que muitas vezes também viviam na corte, os filhos de Egas Moniz e as filhas da mãe com o Trava.
É licenciado em Economia. Como aparece este gosto pela História?
Em pequenino ia passar férias a Guimarães porque os meus avós paternos eram de lá. E eles tinham um gosto especial por nos contar histórias de D. Afonso Henriques, de D. Teresa e Egas Moniz. Sempre gostei de economia e ainda dou aulas, mas ao longo da vida fui descobrindo que aquilo de que eu gostava mesmo era de escrever livros.
Como fez a formação como escritor?
Desde miúdo que sou um consumidor voraz de livros, estava sempre a ler, e isso deixou em mim uma paixão enorme pelas histórias. Depois entrei para o jornalismo, trabalhei n’“O Independente” e fui treinando a minha escrita, até que houve um dia em que me apeteceu começar a contar histórias inventadas por mim.
Houve algum dia em que pegasse num monte de folhas e dissesse ‘Agora vou escrever um livro’?
Não houve um dia fundador, mas desde os meus 17, 18 anos que me lembro de querer escrever um livro. Na altura tive quatro ou cinco ideias que acabei por deixar de lado, mas sempre soube que mais tarde ou mais cedo ia escrever. Tinha 28 ou 29 quando comecei a escrever o primeiro livro e publiquei-o com quase 30.
Troca impressões com os seus pais, pede-lhes conselhos?
Normalmente mostro os manuscritos.
E eles dão-lhe sugestões?
O meu pai preocupa-se mais com o lado formal, vê se há erros, coisas que não se percebem tão bem. A minha mãe insiste mais na análise psicológica das personagens. É importante o escritor ter essa capacidade de ouvir, que é uma coisa que me ficou de quando estudei nos Estados Unidos. Eles gostam de ouvir antes de publicar um livro e acho que essa é uma boa maneira de trabalhar.
O que estudou nos EUA?
Fiz o mestrado em Relações Económicas Internacionais.
Esse mestrado valeu mais pelo que aprendeu na universidade ou fora dela?
Ajudou-me a ler os acontecimentos do mundo, mas não trabalho nisso no dia-a-dia. A rentabilidade profissional que retirei do mestrado foi relativamente pequena, portanto tendo a pensar que a experiência de estar a estudar em Nova Iorque numa universidade muito boa, a viver naquela cultura, foi mais importante do que propriamente as cadeiras que estudei.
Onde ficou a viver?
A universidade é ligeiramente a norte do Central Park e vivia numa dessas ruas, num estudiozinho da universidade. Conheci muita gente e a vida de estudante americano é uma experiência fantástica. Gosto muito dos Estados Unidos e fez-me muito bem viver lá.
Quando chegou lá não se sentiu intimidado?
Ainda hoje quando vou a Nova Iorque me sinto. Nova Iorque é uma cidade intimidante, com uma grande agressividade. Estive lá há um mês com os meus dois filhos mais velhos e ficámos perto de Times Square. No segundo dia, quando lhes mostrei a universidade onde estudei, o meu filho disse: ‘Bom, aqui eu já era capaz de viver’.
No início teve momentos difíceis?
Tenho uma família grande, estou habituado a almoçaradas de 30 pessoas, com os primos todos, e de um dia para o outro desapareceu tudo. O primeiro mês, mês e meio é difícil. Mas depois começas a adorar e a ser um ‘new yorker’. Levantas-te, vais à livraria e à papelaria e a senhora já te conhece. E fiz amigos na universidade, amigos portugueses que também viviam lá. Era novo, fazíamos farras, tive situações muito giras, como conhecer a Cindy Crawford. Há coisas que só te podem acontecer ali.
Como foi esse encontro com a Cindy Crawford?
Foi uma daquelas coincidências que acontecem uma vez na vida. Havia uma espécie de restaurante bar onde eu ia quase todas as semanas e o porteiro já me conhecia. Um belo dia, estava com três amigos portugueses e decidimos ir lá. Aquilo estava com um ar de festa, aquelas correntes que abrem e fecham. Cheguei ao pé do meu amigo porteiro, o Jack, com a maior das naturalidades. Ele teve um momento de hesitação e perguntou ‘Are you on the list?’.
E disse-lhe que claro que estava na lista…
‘Of course I’m on the list!’. Ele nem olhou, abriu a corrente e deixou-nos entrar. Então o que era? Tinha havido um jantar da Vogue que a seguir se multiplicou em pequenas festinhas, e aquela era uma delas. Estavam lá as modelos todas mais conhecidas do mundo – a Christie Turlington, a Linda Evangelista – e alguns atores de Hollywood, como o Mickey Rourke, já um bocado deformado. A Cindy Crawford por acaso meteu conversa comigo e pediu-me um cigarro. E eu a pensar: ‘O que é que me está a acontecer?! Deixa-me cá beliscar’. Falámos durante uns 30 segundos, a partir daí costumava dizer que sou amigo da Cindy Crawford. Foi um minuto de glória da minha vida. Mas em Nova Iorque é muito frequente encontrarmos em certos restaurantes e bares caras conhecidas de Hollywood. Cruzei-me uma vez na rua com o Robert de Niro, e de outra vez com dois atores dos Sopranos, que estavam a sair de uma discoteca numa ‘limo’ branca, com duas russas de um metro e noventa.
Vou pedir-lhe agora pedir para recuarmos. O que se lembra do 25 de Abril?
Do dia 25 de Abril propriamente lembro-me pouco. Lembro-me é depois. Na altura, os meus pais tinham uma casa na Alameda D. Afonso Henriques e eu estava habituado a ir passear para o relvado. De um dia para o outro, a Alameda virou palco das manifestações e eu deixei de poder ir passear para lá. Mas ainda era muito novo para perceber o que é uma mudança de regime.
Que idade tinha?
Seis anos. Depois veio uma época em que sentimos as coisas mais complicadas. Sobretudo com um episódio que se deu ainda em 74. Estávamos na quinta dos meus avós, em Guimarães, e houve um almoço com amigos, alguns dos quais tinham sido figuras importantes do regime. Alguém deve ter feito uma denúncia e nessa noite, à hora do jantar, a quinta foi cercada pelos militares do COPCON. Homens de metralhadoras a entrar pela casa adentro, a revistarem a casa, a quererem levar o meu avô preso para o Porto. Um disparate. A partir daí entra-se naquela fase mais turbulenta e aí sim, há uma sensação de perigo. Tivemos de ir muitas vezes para casa de outras pessoas, foi um bocado tenso. Mas depois as coisas ficaram mais normais e aí o facto de ser filho de um líder político muito conhecido punha-me na frente dos combates políticos. Era o filho do Freitas do Amaral e os comunistas não gostavam de mim no liceu.
Era discriminado?
Quando havia manifestações ou acontecimentos políticos chamavam-me fascista. No dia seguinte voltávamos a jogar à bola. Mas ser filho de um político permitiu-me compreender a história política do país provavelmente muito melhor do que a maioria das pessoas e, por outro lado, conhecer imensa gente.
Estamos a falar de quem?
Desde o Mário Soares ao Sá Carneiro, Amaro da Costa, Ramalho Eanes, Marcelo Rebelo de Sousa – todas as pessoas que foram importantes em Portugal durante muitos anos da vida política, e mesmo mais tarde, como o Paulo Portas e o Passos Coelho.
Lembra-se da morte de Sá Carneiro?
Perfeitamente. Estávamos em casa a jantar, ou já tínhamos jantado, eram oito e pouco da noite e apareceu a segurança do meu pai a dizer: ‘Temos uma notícia complicada’. Ainda estivemos na dúvida, depois o meu pai recebeu um telefonema e lembro-me perfeitamente dele a escrever a lista dos passageiros que iam lá dentro. Entretanto a televisão foi suspensa e apareceu música clássica. Depois o meu pai fez uma declaração, que deve ter sido das coisas mais difíceis que ele fez na vida.
Disse que chegou a conhecer Sá Carneiro.
Tinha estado com ele três ou quatro vezes. Quem nós conhecíamos muito bem era o Adelino Amaro da Costa, que era o melhor amigo do meu pai e praticamente vivia em nossa casa. Tinha um descapotável e levava-nos imensas vezes a passar. Aquilo que mais sentimos foi a morte dele, que era quase como um irmão do meu pai. Só depois percebemos o significado político.
Alguma vez formou opinião se Camarate foi um acidente ou um atentado?
Nunca consegui ter a certeza. Acho que há argumentos muito fortes dos dois lados. Como é possível um aviãozinho ter estado parado durante uma hora e meia no aeroporto de Lisboa a tentar pegar os motores – um avião que tem lá dentro o primeiro ministro de Portugal e o ministro da Defesa – e ninguém dizer: ‘Não podem ir neste avião’? E depois ainda vem um gerador para pegar?! Isto é surreal. Alguém devia ter dito: ‘O avião está estragado. Saiam. Têm de ir noutro’. É por causa disso que tenho dúvidas.
E as presidenciais de 86, como as viveu? Acompanhava o seu pai nas ações de campanha, andava com ele?
Sim, andei com ele algumas vezes. Não foi uma campanha que tenha exigido especialmente da família. Ainda não estávamos na época em que se fazem vídeos com os filhinhos a saltitar à volta… Fizemos uma fotografia ou duas mas nada de muito complicado, e fomos a alguns comícios e ações de campanha.
Votou?
As presidenciais foram em janeiro e fevereiro de 86, e eu tinha 18 anos feitos em outubro de 1985. Só que na época só te podias recensear em março. Por isso, embora já tivesse 18 não pude votar. Tive um pequeno desgosto.
E tentava convencer os seus amigos?
Não, a grande maioria dos meus amigos não precisavam de ser convencidos. Eram quase todos do PSD ou do CDS. Foi um raro momento de consenso – amigos, família, toda a gente queria o mesmo, toda a gente o apoiava e toda a gente vibrou muito com a campanha.
A derrota do seu pai também foi uma grande desilusão?
Não. O que me espantou, sinceramente, não foi ter perdido, foi ter quase ganho. Isso é que foi a surpresa.
Mas o seu pai quase ganhou à primeira volta.
Sim, quase ganhou à primeira volta e senti que se fosse o Zenha a passar à segunda volta o meu pai ganhava. Quando foi o Soares, percebi que não. Com o desaparecimento do Sá Carneiro, o meu pai era a principal figura do centro-direita e o Soares era a principal figura do centro-esquerda. E aconteceu o que normalmente acontece em Portugal: a esquerda é um bocadinho maior que a direita.
Esteve no comício da Fonte Luminosa?
Estive na Fonte Luminosa, na Avenida da Liberdade, na Avenida dos Aliados. Estive em todos os grandes comícios.
O que sentia ao ver aquela gente toda ali reunida por causa do seu pai?
Um entusiasmo muito grande. Mas no comício da Fonte Luminosa houve um momento de um certo amadorismo. Não sei já onde fomos jantar, mas saímos daí para o comício. Estavam dois batedores da polícia de mota, ia o carro do meu pai e eu ia com os meus irmãos num carro atrás. E eles, em vez de nos deixarem nas traseiras do palanque, decidiram fazer esta coisa extraordinária que foi atravessar a Alameda a meio. Dois batedores da polícia e dois carrinhos a atravessarem um mar de gente, uma coisa colossal. Foi uma coisa perfeitamente pavorosa. Não imagina o que é estar num carro cercado por milhares de pessoas a baterem com as bandeiras e a dar cacetadas no carro. Eu achei ‘isto vai-se rebentar tudo, vamos ser mortos’ [risos]. Ao mesmo tempo pensava: ‘Não, as pessoas não nos querem fazer mal’. O carro ficou completamente cheio de mossas por todo o lado.
Disse que o resultado das eleições não foi uma surpresa. A família encarou toda a derrota com essa normalidade ou foi um balde de água fria depois de terem visto tanto entusiasmo?
O meu pai e a minha mãe sempre foram pessoas bastante lúcidas e prepararam-nos para as duas coisas. Na véspera estivemos todos a conversar e disseram-nos: ‘Aconteça o que acontecer seremos os mesmos. E o mais provável é não ganharmos’. Tinha-se feito uma sondagem e nós sabíamos desde sexta-feira ou sábado que a probabilidade era pequena. O meu pai disse que se não ganhássemos íamos todos a Nova Iorque. Lá fomos a Nova Iorque, foi bem divertido, e a vida continuou. Mas houve uma coisa difícil.
Qual?
A sensação de que durante seis meses és o centro das atenções, toda a gente te adora, e de um momento para o outro mais ninguém aparece. O Marcelo Rebelo de Sousa foi das poucas pessoas que iam visitar o meu pai durante aqueles seis meses depois das eleições. Aparecia lá a visitá-lo e a animar.
E as pessoas que não foram?
Não sei, lá teriam as suas razões.
Quem eram?
A entourage toda, 50 pessoas que passavam lá a vida e para quem nós éramos os maiores do mundo. Mas é assim a vida. A perspetiva da vitória entusiasma, lidar com a derrota é uma coisa que muita gente tem dificuldade. Do ponto de vista pessoal – na altura não queria dizer isto em público, mas agora não me importo nada – acho que a minha vida teria sido uma chatice monumental. Ser o filho do Presidente, entre os 18 e os 28 anos, ter de andar com seguranças atrás, não poder apanhar um pifo no Bairro Alto… Ter os jornais a fazerem notícias porque fizemos um disparate qualquer ou tivemos um acidente de carro? Por favor… Assim tivemos uma vida normal, ninguém me chateou, ninguém andou a ver o que andávamos a fazer.
Há pessoas que não lidam bem com o facto de os pais serem pessoas conhecidas. Alguma vez sentiu isso? Deu-se sempre bem com o seu pai ou houve alguma fase de rebeldia?
Sempre me dei bem com os meus pais. Somos bastante próximos, conversamos sobre todas as coisas da vida deles e da minha. Claro que há momentos em que a pressão de ser ‘o filho’ de incomoda um bocado. Mas se o meu pai fosse um grande cantor de rock era igual. A fama é a fama. E quando as pessoas têm a fama devido ao seu trabalho, não tenho nada de que me envergonhar.
E também teve o proveito?
Também conseguia entrar nas discotecas [risos]. Se calhar nos correios ou nas repartições públicas há alguém que te chama à parte e diz: ‘Você é o filho do professor? Então venha cá que eu ajudo’. Não vou dizer que de vez em quando não houvesse uma porta ou outra que me possam ter aberto por causa disso. Mas mais nas coisas do dia-a-dia. Na minha vida profissional, fui fazendo o meu caminho, fosse no jornalismo ou na escrita, e isso já não tem a ver com de quem és filho ou não és filho.
O seu pai fundou o partido mais à direita do espectro político, mas já foi ministro de um governo socialista e parece ter vindo a fazer uma inflexão à esquerda. Concorda com esta leitura?
À superfície parece assim. Mas há coisas que devem ser levadas em conta para analisar isso. Primeiro: Portugal saiu de uma revolução que deitou abaixo uma ditadura de direita e quando construiu uma democracia vários partidos foram proibidos. O meu pai costumava dizer isso: ‘Fiquei o líder do partido mais à direita porque todos os outros à direita foram proibidos’. Isto para explicar que o meu pai nunca foi tão à direita como a revolução acabou por o ‘obrigar’ a ser. Segundo: a democracia cristã sempre foi uma ideologia em que havia muita preocupação com os mais pobres, de redistribuição, de proteção aos desfavorecidos, o que é basicamente o que ele ainda defende hoje.
Já me disse que é benfiquista. Recordo-me de ter escrito uma carta muito bonita ao Jorge Jesus depois daquela época fatídica em que o Benfica perdeu as três competições no final. Se soubesse o que sabe hoje teria escrito essa carta na mesma?
Na mesma. Ele estava a fazer um trabalho notável que mais tarde ou mais cedo iria dar frutos – e deu, nas duas épocas seguintes. Portanto nesse momento senti que seria uma ingratidão estúpida e autodestrutiva para o Benfica mandar embora um treinador que tinha conseguido o que ele tinha.
Falaram sobre isso?
Trocámos dois ou três emails e falámos uma vez pessoalmente. Ele foi simpático, disse que eu tinha sido das poucas pessoas que o tinham defendido e que não se esquecia disso. Depois houve um momento em que a direção do Benfica achou que o caminho a seguir era outro. Mas não é por JJ passar a ser treinador do Sporting que deixa de ter qualidades.
Na altura achou um erro Luís Filipe Vieira não ter o mantido?
Se fosse eu não tinha tomado essa decisão. Mas a grande surpresa do ano chama-se Rui Vitória. Que o JJ era um grande treinador já toda a gente sabia. Que o Rui Vitória era um grande treinador, eu próprio não acreditava muito. Lançou jogadores novos, fez uma campanha europeia que nos orgulhou a todos e está a um passo de vencer o campeonato. Palavras para quê? E para mim há duas características no RV que são notáveis. A primeira é a força mental. Mesmo depois de ter levado três pancadas violentas ou quatro, nunca perdeu a compostura e sempre acreditou que conseguia levar o barco a bom porto. A segunda é a sua extrema boa educação, uma coisa que no futebol é muito rara. Neste momento é o meu herói.