Mudar de sexo

Que dirá o BE a um jovem que, aos 17 anos, se arrependa de ter transformado irremediavelmente o seu corpo?  

Em 1928, Virginia Woolf publicou Orlando, um romance genialmente fantasioso, lúdico e lúcido, tratando do tema da mudança de sexo com a naturalidade que lhe é devida – e que, infelizmente, quase um século depois, continua por conquistar. A lógica que, esfregando pedra contra pedra, ligando pedras e paus, tecendo materiais diversos, criou a humanidade, tropeça sempre na curva do bom-senso, atacada pela besta da loucura. Assim, do fogo que aquece e cozinha passámos rapidamente ao fogo que destrói e mata, e da descoberta da espécie comum passámos rapidamente à invenção do inimigo e da estratificação. Alô, alô, século XXI: os homens e as mulheres são pessoas, esqueletos cobertos de carne e formados por feixes de emoções e pensamentos que não se distinguem através do sexo.

A cultura é que criou diferentes exigências, valores e expectativas para homens e mulheres. Há diferenças visíveis, mas pouco relevantes, entre os géneros: homens e mulheres já verificaram que podem fazer os mesmos trabalhos. As guerras serviram, pelo menos, para provar isso.

O sexo é um pormenor. Neste terceiro milénio, já teremos reparado que há pessoas que se apaixonam por outras do sexo oposto e há pessoas que se apaixonam por pessoas do mesmo sexo. Já na Grécia Antiga era assim (e noutros lados, mas a Grécia Antiga é sempre mais fina).

Durante muitos séculos, a um homem que tivesse prazer em vestir-se e comportar-se como aquilo que se entendia ser uma mulher, chamava-se ator. Às mulheres que gostassem de se vestir de homens não se chamava nada, porque se fossem apanhadas nesses preparos seriam, na melhor das hipóteses, consideradas loucas.

François Ozon fez um delicioso filme – A Nova Amiga – que está agora em exibição, e que fala precisamente desse desejo, afinal tão intensamente humano, de nos pormos na pele do outro, de nos despojarmos de nós para nos deixarmos impregnar pela viagem do outro, ou da outra. Quem vai para a cama com quem não importa; quem é quem, quando dois corpos se entregam mutuamente, ninguém sabe; fantasia, desejo, alegria, calor, prazer, troca – é isso que torna a intimidade tão sedutora: a possibilidade de aceder, através do outro, ao desconhecido que somos. Não é preciso mudar de sexo para mudar de sexo.

Uma relação sexual é uma mudança de sexo, sejam ou não do mesmo sexo os envolvidos. Confusos? Recapitulemos: o sexo é um acidente. Um pormenor. Os indivíduos não se definem através do sexo. Etc, etc.

Mudar de sexo, cirurgicamente falando, é outra coisa. Em primeiro lugar, porque é irreversível. Não podemos regressar ao que éramos antes dessa mudança.

Em segundo lugar, porque é – pelo menos por enquanto – um processo médico lento, doloroso, e muitas vezes frustrante. Nunca conseguimos ser o corpo que desejávamos ser, é certo. Até Nicole Kidman se queixa disso. Mas o desapontamento estético com o resultado final de uma mudança de sexo é frequente.

A pessoa determinada a fazer essa operação deve ter maturidade suficiente para ultrapassar uma eventual desilusão – bem como a possível inadaptação aos novos genitais.

O Bloco de Esquerda propõe agora que se possa mudar de sexo aos 16 anos, tal como se pode contrair casamento, começar a trabalhar, pagar impostos e ser criminalmente responsabilizado.

A comparação é leviana: casamentos e trabalhos não são necessariamente imutáveis, a consciência do bem e do mal (ou seja, do crime e do castigo) é perfeitamente adquirida nessa idade, tal como a noção de que os impostos sustentam os sistemas de proteção e redistribuição social.

Todavia, basta conviver com jovens de 16 anos para se saber que a identidade não é ainda estável, nessa idade.

Antes pelo contrário: gostos e desgostos, apetites e fastios, paixões e ódios alteram-se a uma velocidade alucinante.

Os adolescentes fartam-se de si mesmos e do mundo ao seu redor a cada cinco minutos. Vivem com tal intensidade que, ao chegar ao fim de um dia, sentem ter vivido cem anos.

Claro que os adolescentes não são todos iguais – comecei este texto assinalando precisamente a singularidade de cada ser, para lá das manadas desenhadas pelas culturas. Mas uma alteração tão radical e irreversível exige uma longa maturação. Isto mete-se pelos olhos dentro de quem queira ver. Que dirá o Bloco de Esquerda a um jovem que, aos 17 anos, se arrependa de ter transformado irremediavelmente o seu corpo e esteja desesperado?

O afã de atrair os mais jovens e de parecer mais moderno do que a hipermodernidade não justifica tão cruel demagogia.

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