O português que abriu a porta de entrada a José Manuel Durão Barroso na Comissão Europeia é o mesmo português que pode fechar a porta das Nações Unidas a António Guterres. A coincidência? É um dos melhores amigos de Marcelo Rebelo de Sousa, que apoiou entusiasticamente a candidatura de Guterres à ONU. O seu nome: Mário David. Ex-eurodeputado, é um dos responsáveis de longa data pela campanha do PPE em defesa da candidatura de Kristalina Georgieva à ONU, a búlgara que tem o apoio da Alemanha e pode derrotar António Guterres.
Ainda Durão Barroso estava a servir o governo de Cavaco Silva como ministro dos Negócios Estrangeiros e Mário Henrique de Almeida Santos David – nascido em Angola no ano de 1953 – já passeava pelos corredores de Bruxelas.
David é médico de formação e militante do Partido Social Democrata desde o final da década de 70, sendo eleito eurodeputado em 1989. Cedo entendeu o potencial político da União Europeia e criou uma larga rede de conhecimentos que fez dele secretário-geral do Partido Popular Europeu (PPE), após a adesão do PSD à grande família europeia do centro-direita, em 1996. Mais tarde, foi vice-presidente do PPE, cargo hoje ocupado por Paulo Rangel, durante três mandatos. Também foi deputado na Assembleia da República, eleito em 2005, estando sempre ligado às temáticas europeias. Em 2009 regressou ao Parlamento Europeu, que finalmente deixou há cerca de dois anos.
A relação deste homem com José Manuel Durão Barroso inicia-se no PSD, apresentados por Marcelo Rebelo de Sousa. Foi durante a liderança de Marcelo no partido que Mário David foi secretário-geral do PPE e se conseguiu a entrada dos sociais- -democratas para este partido europeu.
Quando Durão Barroso sobe a primeiro-ministro, em 2002, David vai para assessor político em São Bento. Era o único membro do gabinete que não tinha estado com Barroso nos Negócios Estrangeiros. Quando o primeiro-ministro é convidado para presidir à Comissão Europeia, foi Mário David quem ficou encarregado de liderar a equipa de transição de Durão Barroso. A imprensa internacional considerou-o peça- -chave para a chegada de Barroso a Bruxelas. “Terá movido mundos e fundos”, recorda fonte próxima ao i. Com a chegada de Santana Lopes ao poder para substituir Barroso, David é nomeado secretário de Estado dos Assuntos Europeus.
O i sabe que a relação de Durão Barroso e Mário David começou por ser profissional. Todavia, aquela que começou por ser uma amizade política ter-se-á expandido para uma amizade pessoal após a longa cooperação dos dois homens nos corredores da União Europeia. “Não é um amigo de casa, mas a verdade é que desen-volveram uma relação muito funcional e os anos foram passando”, revela fonte que se reservou ao anonimato. “Em termos de PPE [Partido Popular Europeu], Barroso tornou-se talvez mais próximo de Rangel, mas Mário David estava sempre presente.”
Quando a vontade de alargar o projeto europeu à Europa de leste é assumida pela Comissão Europeia, Durão Barroso nomeia Mário David como conselheiro especial para o alargamento da União. David acompanhou os 12 países que se candidataram à integração e tornou-se responsável pelas relações da Comissão com os países balcânicos. Terá ficado amigo pessoal de Viktor Orbán, o polémico primeiro-ministro húngaro. Outra das amizades cimentadas pelo português terá sido com Kristalina Georgieva. Hoje, Mário David é um dos principais impulsionadores de uma candidatura da vice-presidente da Comissão Europeia à secretaria–geral das Nações Unidas. Especialistas académicos defendem ao i que Georgieva seria a única candidatura capaz de travar António Guterres, o homem que representa Portugal na corrida à ONU. Para Georgieva entrar na disputa, todavia, será necessário a Bulgária abdicar da sua nomeada atual, Irina Bokova.
O governo búlgaro já fez saber que, se Bokova não ficar nos dois primeiros lugares da próxima votação amigável – dia 26 deste mês -, irá retirar a diretora da UNESCO da corrida à secretaria–geral da Organização das Nações Unidas. As votações a valer – com os votos coloridos que assumem as posições dos membros do Conselho de Segurança, tendo poder de veto – iniciam-se logo na primeira semana de outubro. Uma entrada na disputa por parte de Kristalina Georgieva será sempre em corrida contra o tempo; afinal de contas, a búlgara ainda não realizou nenhum tipo de campanha oficial.
As possibilidades de sucesso de Irina Bokova, a atual candidata da Bulgária, são reduzidas devido a ter sido militante do partido comunista búlgaro. As suas origens ideológicas representam um entrave inevitável ao apoio da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos da América. Bokova, ciente das melhores possibilidades de uma eventual candidatura da sua compatriota Kristalina Georgieva, não vê com bons olhos uma saída da corrida.
A existência de uma rivalidade política de longa data entre as duas búlgaras dificulta a desistência de Bokova em favor de Georgieva. Politicamente, esta é uma moderada de centro-direita, contrastando com o esquerdismo de Irina Bokova.
O i sabe que Georgieva prepara há anos uma candidatura à ONU, tendo sido apenas preterida pelo governo búlgaro de modo a afastar Bokova de uma candidatura à presidência da Bulgária, eleição que se realiza no próximo mês de novembro. O primeiro-ministro búlgaro, Boyko Borisov, havia sondado Georgieva para tentar as Nações Unidas e foi obrigado a voltar com a sua palavra atrás para convidar Bokova e impedi-la de tentar a presidência.
Georgieva manteve, todavia, o apoio de outros países da Europa central e de leste, que viam com bons olhos uma candidatura da atual vice-presidente da Comissão Europeia às Nações Unidas. A búlgara optou por não avançar sem o apoio do seu país devido à China ter anunciado que, como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, vetará qualquer candidato que não represente o seu país de origem. Pequim receia que um dissidente seu seja um dia candidato por Taiwan.
Os Estados Unidos não veem Georgieva com maus olhos e têm sido a voz mais “feminista” no Conselho de Segurança, o órgão da ONU de que depende verdadeiramente a nomeação do novo secretário-geral devido ao poder de veto dos seus membros.
A Rússia de Vladimir Putin poderá não querer abdicar de uma forte candidatura regional, de leste. Do ponto de vista de Moscovo, o facto de Georgieva ser de leste e ter grande influência na estrutura da União Europeia, sendo a atual vice-presidente da Comissão, é algo atrativo, na medida em que poderá contribuir para um amenizar das tensões em torno da questão da Crimeia. A economia russa enfrenta um período de maior debilidade e a problemática das sanções europeias depois da intervenção de Putin na Ucrânia poderá pesar no apoio a Kristalina Georgieva. Até à data, o Kremlin não se comprometeu com nenhum candidato, mas é sabido que António Guterres não viajou para Moscovo desde que anunciou a sua candidatura e que Augusto Santos Silva, o ministro dos Negócios Estrangeiros do governo português, viu uma proposta de apoio a Guterres ser recusada aquando da sua visita à Federação Russa. O ponto de honra de Putin – e isso já fez saber – passa pelo próximo secretário-geral da ONU ser de leste e o facto é que, até agora, não há uma forte candidatura da região às Nações Unidas. Essa será a abertura de Kristalina Georgieva.
A eventual candidatura de Georgieva tem o apoio de alguns socialistas e liberais europeus, embora, naturalmente as maiores fontes de apoiam venham da sua família política, o PPE. O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, já terá verbalizado o apoio à sua vice-presidente e o seu chefe de gabinete – que muitos dizem ser “o verdadeiro presidente da Comissão Europeia” – até já o anunciou publicamente. O eurodeputado Paulo Rangel afirmou esta semana que a Alemanha também apoia uma candidatura de Georgieva. O Partido Popular Europeu – força maioritária no Parlamento da UE e da qual Angela Merkel faz parte – estará descontente com o facto de todas as votações para a ONU terem, até agora, dado os três primeiros lugares a candidatos progressistas, distantes da linha de centro-direita do PPE.
Kristalina Georgieva, mulher, de leste, vice-presidente da Comissão Europeia e membro do PPE, seria uma candidatura ameaçadora à vitória de António Guterres. A búlgara tem uma relação de amizade com Durão Barroso, de quem foi comissária europeia durante cinco anos, embora este tenha assumido diversas vezes: “O meu candidato é o candidato do meu país.”
Caso a candidatura de Georgieva se concretize, é mais que provável que Mário David regresse a exercer funções de consultor junto desta. Afinal de contas, trabalharam meses para isso. Mário David é cavaleiro da Ordem de Madra da República da Bulgária, tendo sido condecorado pelo rei do país natal de Kristalina Georgieva. Hoje pertence ao comité executivo da Internacional Democrata Centrista, que engloba partidos como a CDU alemã de Merkel, o PP espanhol de Mariano Rajoy e o PSD português.