Não se reconhece David Lodge. A fotografia irreverente mas severa que batiza os seus livros não bate com a imagem que procuramos no lobby de um hotel na cidadela de Cascais. Aos 81 anos, o cabelo está branco e deixou crescer um bigode. As calças de linho bege contrastam com os ténis ortopédicos. Mary, a mulher, observa-nos vigilante, da varanda junto à receção. Namoram desde o primeiro semestre da faculdade e é ela a heroína que transparece no livro de memórias de Lodge, omnipresente na obra e na nossa conversa.
Os rumores de traços autobiográficos na literatura do autor vão sendo confirmados. O lobby é bombeado por uma música eletrónica e Lodge retira o controlador do aparelho auditivo do bolso: “Não oiço muito bem…” Desmond Bates, protagonista do seu aclamado romance “A vida em Surdina”, sofria do mesmo problema. Tal como Bates, David Lodge é um professor universitário reformado. E Mary, tal como a mulher fictícia de Bates, tem uma galeria de arte.
Continua católico?
Não sou um católico praticante. Até há uns anos ia à missa aos domingos. Depois decidi que não tirava grande coisa disso, filosófica ou intelectualmente. Havia uma dissonância cognitiva entre aquilo que se dizia na missa e aquilo em que acreditava. A Mary vai à missa, mas é uma coisa mais tribal do que intelectual. É filha de irlandeses católicos. Ela gosta
de ir à missa; para mim, sempre foi um bocadinho enfadonho. Quando deixei de ir li o Novo Testamento do início ao fim pela primeira vez na vida. Ao domingo de manhã leio algo de história eclesiástica e é muito interessante. Devia ter feito isso mais cedo. Ainda me interesso muito pela Igreja Católica, que foi uma instituição que observei durante a minha vida
e me deu muito material para a ficção. De modo algum rejeito ou negligencio essa herança. Mas cheguei a um ponto em que intelectualmente não consigo entrar na rotina. Quando havia um batismo na igreja e repetíamos todos as promessas,eu já não conseguia fazer aquilo.
O que acha do Papa Francisco?
É uma brisa de ar fresco. Quando eu era um católico ativo, estive envolvido na renovação e liberalização da Igreja. Escrevi duas novelas sobre isso. Se não tivesse sido apanhado na onda dos católicos liberais, provavelmente não teria permanecido católico tanto tempo. Depois do Papa João xxiii e do ressurgimento com o Concílio Vaticano ii, o Papa Bento xvi e o Papa João Paulo ii, com a nomeação de cardeais reacionários, inverteram um bocado o que foi feito. Esse conflito entre o catolicismo conservador e tradicionalista é interessante. Francisco tentou recuperar alguns princípios do Concílio Vaticano ii e eu aplaudo isso. Mas está muito velho, não sei quanto mais tempo conseguirá manter isto. Assustou o Vaticano de morte e isso é refrescante. Se conseguirá de facto mudar as coisas, veremos.
No seu livro de ensaios “A Consciência e o Romance” escreveu que os escritores podem ser mais importantes que os historiadores.
O historiador tem de trabalhar com fontes factuais, mas depende de novelas para entender a sensibilidade das pessoas porque é difícil compreender aquilo que as pessoas estão mesmo
a pensar. A consciência é um segredo. Na minha novela “Pensamentos Secretos” falo disso.
A consciência é central para a experiência humana. Não pode ser cientificamente recuperada, mas os novelistas podem pelo menos fingir que sabem o que as pessoas estão a pensar. E isso é material para história social. Vai escapar muita coisa a um historiador que não tenha lido romances. Os romancistas observam comportamentos, mudanças de ambiente, roupas, e os historiadores podem pegar nisso. Dickens e Jane Austen são essenciais para um historiador do século xix. São complementares.
Um dos impactos que a sua obra deixou foi a sociedade passar a olhar para o campus universitário pela sua perspetiva.
As novelas de campus tornaram-se um género literário. A seminal, para os escritores ingleses, é o “Lucky Jim”, do Kingsley Amis, que estabeleceu um lado satírico na vida académica. A ideia de que o campus é um território especial, privilegiado, em que os conflitos da sociedade eram jogados em miniatura. Rivalidades, aventuras sexuais, ambições, relações de poder. E vaidade profissional. Estão todas lá.
A universidade como “microcosmos” da sociedade. Os ideais de uma universidade são muito elevados – a busca do conhecimento, do bom, do belo e do verdadeiro –, mas as pessoas que a constituem são seres imperfeitos porque são seres humanos. Têm invejas e intrigas como toda a gente. Esse contraste entre o propósito da instituição e quem a compõe cria um lado satírico que é literariamente atrativo. Ou não haveria ficção. Tem de haver falhas porque são elas que criam tensões e conflitos. Ou não há história. Seria como escrever um livro sobre um mosteiro
com monges mudos.
É muito popular em Portugal, o Kingsley Amis nem tanto.
Isso é muito simpático de saber. Ele escreveu muitos livros indiferentes, alguns não eram muito bons. Mas o “Lucky Jim” foi muito importante, influenciou jovens escritores como eu e trouxe um novo tom de voz na ficção.
As universidades mudaram muito entretanto?
Mudaram muito nos últimos tempos, graças à cultura trazida por Margaret Thatcher. Antes, os administradores eram funcionários de baixo nível, agora são eles que mandam nas universidades. O tipo de excêntricos que havia na profissão quando eu entrei hoje simplesmente não sobrevivem. Quando comecei, se conseguisses o trabalho, não podias ser corrido a não ser que fizesses algo mesmo mau, tipo violar a filha do vice-reitor ou assim. E podia não se publicar nada, só dar aulas; agora há muita pressão para publicar e aparecer nos jornais, dar conferências. É tudo muito mais competitivo. “A Troca” é sobre o contraste entre dois tipos de culturas: a americana, muito moderna e muito rica, e a inglesa, muito amadora, humana e incompetente. Agora, com a educação em massa, estamos mais próximos do modelo americano.
Essa cultura mata a criatividade?
Já mata. Pode dizer-se que aumenta a eficiência, com mais estudantes nas universidades, mas a verdade é que muitos deles têm uma educação inferior.
Então teve mesmo muita sorte em nascer naquele tempo?
Sim, sim. Daí o título da autobiografia [“Quite a Good Time to Be Born”, não editada em Portugal]. Só 5% da minha geração foram à faculdade. Era muito competitivo, mas era livre. Tínhamos de abrir-nos a mais pessoas, mas quanto mais se abre, menos qualidade de educação existe.
Mas um maior acesso à educação é bom.
Sim, claro. No final houve mais ganhos que perdas. As universidades eram algo elitistas. Agora qualquer um que quiser pode estudar e isso é bom. Especialmente pessoas mais velhas que perderam a oportunidade quando eram jovens, como mulheres que foram mães. Isso era impossível quando eu era novo.
A sua mulher é personagem central na sua vida.
Sim, conhecemo-nos na universidade. Tivemos o mesmo tipo de experiência.
Ela tomou conta dos vossos filhos, por exemplo. Mas em que medida o ajudou a ser escritor?
Foi muito tolerante. Os escritores tendem a ser neuróticos, complicados de se conviver. Ela é muito forte, felizmente. Teve uma carreira autónoma. Primeiro como professora. Tivemos um filho deficiente. Não ascendeu tanto quanto podia ter ascendido se estivesse dedicada inteiramente a isso. Depois, reformou-se aos 60 anos, tirou um mestrado em belas-artes e é uma artista. Fundou uma galeria com outras duas senhoras com um percurso similar e é a ocupação dela. Somos admiradores da Paula Rego; na verdade conhecemo-la e temos algumas peças dela.
Uma das personagens n’“A Vida em Surdina” tem uma galeria de arte.
Sim. Fui buscar alguma informação aí. A cena de abertura é muito tirada da minha vida, sim. Os escritores são assim. Aspiram a realidade que lhes aparece à frente.
Como equilibra a ficção e a realidade?
É difícil. O interesse, por exemplo, da autobiografia é pessoas que leram os romances descobrirem de onde vieram certas coisas. Isso é uma curiosidade natural perfeitamente válida e eu não teria escrito um livro se quisesse manter as fontes secretas. O que é difícil é que já escrevi sobre pedaços da minha vida em vários formatos e não consigo evitar repetir-me de modo a dar um relato contínuo da minha vida sem espaços em branco. Há algum reciclar dos mesmos episódios, mas a maior parte do tempo uso diários ou cadernos que mantive. Os escritores dependem mesmo é da sorte, de meter experiências à sua frente. Quando os produtores da BBC me perguntaram se fazia um programa sobre a peregrinação a Santiago de Compostela, todo esse episódio no “Terapia” é sobre isso. Foi uma oportunidade maravilhosa, mas eu não a procurei; aconteceu e afetou todo o enredo dessa novela. Nós dependemos disso e tens de agarrar essas oportunidades quando as consegues.
Usa a ida dos seus personagens a psicanalistas para aproximar o leitor da sua consciência?
Não. O novelista está livre para representar a consciência da maneira que quiser.
Então porquê o divã?
Porque estava na minha mente. Porque eu estava deprimido e fiz terapia. Mas o tema também andava no ar, na cultura. Os anos 60 foram da política, os 70 do sexo, os 80 do dinheiro e os 90 foram da terapia – para recuperarmos dos outros todos! E parece-me que houve uma explosão de interesses em múltiplos tipos de terapia nos anos 90 e eu fui parte disso. Com a queda da religião, as pessoas voltaram-se para aí.
Fala muito abertamente dessa experiência.
É essa a beleza de se ser escritor. Pode-se transformar uma experiência negativa, que como ser humano se preferia não ter, em algo positivo, escrevendo-a. É o grande privilégio de se ser escritor. Há algumas desvantagens mas, se se tiver algum sucesso com isso, é muito bom. E suponho que isso explique porque tanta gente quer escrever livros. Agora todos podem fazê-lo na internet!
As críticas ainda são importantes para si, depois deste tempo todo?
É sempre importante, por ser a primeira resposta desinteressada ao teu trabalho. Claro que há críticos com uma agenda, que querem ganhar nome, mas não podemos ignorá-los porque afetam a receção do livro. Todos os novelistas são apreensivos em relação à crítica. Há uns totalmente obcecados com isso, e não as leem. Outros pedem às mulheres para lerem e dizerem se são boas ou más. A mulher do Julian Barnes, infelizmente defunta, costumava ler-lhe as críticas e dizer “olha, fulano tal não há de vir tomar chá”.
Quando escreveu “Longe do Abrigo” não foi nada bem recebido.
É verdade. Em parte, creio que não foi publicado na altura certa (1970). Ainda estávamos, na época, na contracultura, ninguém queria saber de um livro tranquilo e triste sobre o pós-guerra. Na América foi a mesma coisa, nem quiseram publicar. E foi terrivelmente produzido, com erros péssimos. Além disto tudo, tive de o cortar pelo menos num quarto e fiz isso algo apressadamente. Quando, mais tarde, “A Troca” foi publicada, foi um grande sucesso e encorajou os meus editores a resgatarem o “Longe do Abrigo”. Foi a única obra que reeditei e as pessoas leram-na com alguma nostalgia. Vende bastante bem agora e foi traduzida em várias línguas. Isso foi bastante satisfatório, depois do insucesso inicial. De certo modo, inspirou-me a regressar ao modelo cómico que tinha garantido sucesso com o “Museu Britânico”. Mudei de editor e a minha carreira arrancou daí.
As suas novelas estão cheias de sexo e gente louca.
A maioria das novelas estão!
Sim, mas a sua autobiografia revela um homem monogâmico, casado com a primeira namorada.
É bastante fácil imaginar sexo porque envolve elementos de fantasia. Se tivermos uma vida sexual saudável, a mecânica não é difícil de descrever.
O trabalho do escritor é isso: imaginar a vida de pessoas diferentes dele próprio. Já escrevi do ponto de vista de uma mulher e não tenho nenhuma experiência em ser uma. Mais difícil do que escrever sobre sexo era escrever do ponto de vista de uma bailarina. O sexo é universal.
Nunca perdeu autoridade na sala de aula por causa do humor nas novelas?
Nunca discuti o meu trabalho com os meus estudantes, embora soubesse que todos eles o liam. Nunca ensinei escrita criativa. Foi importante separar o meu “eu” novelista do meu “eu” professor. Com a idade, tornou-se um pouco esquizofrénico e foi com alívio que me reformei para a escrita a tempo inteiro. Quando o “Nice Work” foi adaptado à televisão, parte das filmagens foram feitas na Universidade de Birmingham.
Isso teria sido impossível se eu ainda lá estivesse.
Mas também não discute o seu trabalho com os seus filhos…
Os filhos têm uma certa dificuldade na relação com pais que sejam escritores. Têm medo de saírem retratados.
E já perdeu um amigo por algo que tenha escrito?
Tomo cuidado em não retratar alguém muito reconhecível. Posso tirar-lhe alguns traços, mas misturo-os com outra pessoa. Evito magoar pessoas dessa maneira. Só tive de mudar o nome de uma personagem estrangeira por uma mulher achar
que estava a ser associada.
Não se arrepende de nada do que escreveu?
Não, nada. Só um final. Apressei o capítulo e dei um final demasiado feliz ao herói. Dei-lhe demasiado dinheiro e foi estúpido. Uma coisa mínima.
Porque criou Rummidge em vez de usar Birmingham como cenário para o campus universitário?
A primeira novela em Rummidge é passada em 1969. Tinha de ser uma universidade ficcional. Não se pode pegar numa universidade verdadeira, associá-la a um tempo específico e enchê-la de personagens fictícias. Simplesmente, não faz sentido. Tinha de estar levemente disfarçado. E eu não poderia usar a Universidade de Birmingham. É demasiado grande. Em Rummidge, o departamento de Inglês só tem um professor! Nas vésperas da edição hesitei, porque achava que outras universidades pensariam que era Birmingham, mas não era. Era ficcional, menos assertiva e mais tradicional. No entanto, tenho de dizer que Birmingham é bastante cordial comigo. Têm cartazes com a minha cara. Acho que não se importam com os romances. É uma grande universidade.
Vai escrever o segundo volume das memórias?
Vou, vou. Não sei quando, ainda vou a meio e a publicação de livros é cíclica. Talvez no outonodo próximo ano.
E um novo romance?
Não sei. Tenho ideias à espera de cimentar, talvez mais uma última. Chegar aos 80 não é uma boa altura para um escritor. O cérebro começa a decair e entra-se no perigo de se repetir. Não prometo nada.