Quem quer tra(m)var a Justiça?…

Há um não sei quê de melancolia ácida, de solidão visceral e de desconforto contido, nas entrevistas do juiz Carlos Alexandre à SIC e ao Expresso, reveladoras do cerco que lhe montaram, primeiro para o intimidarem e, depois, para o substituírem quando for mais propício.

A frase que fez o título da primeira página do jornal foi um grito de alma e um aviso, a quem de direito (se não andar distraído): «Querem afastar-me de tudo».

Percebeu-se que não o disse por acaso, nem de uma forma impensada, como não o foram a história de vida que contou na SIC em jeito coloquial, e o striptease patrimonial – que repetiu em registo publicado –, para que conste .

O juiz só – como estampa ainda o Expresso na capa da revista – é um documento pró-memória de um magistrado que não abdica da sua dignidade institucional, nem se curva diante de pressões.

Podem querer afastá-lo, mas ele já assegurou um lugar na história da magistratura, ao mandar deter um ex-primeiro-
-ministro com muitas contas por explicar, e de um ex-banqueiro de linhagem, não menos.

Ora, poderá um juiz com o currículo de Carlos Alexandre agir de ânimo leve? Duvida-se. E poderá uma campanha de ‘reabilitação’ de Sócrates (desde o Marão, ao convite para ser orador na Universidade de Verão do PS, em Lisboa) branquear as suas responsabilidades, enquanto político e cidadão arguido? A máquina move-se.

 

É certo que a tese da cabala tem perdido fôlego. Sabem-no os investigadores – por aquilo que tem vindo a público –, sabem-no os juízes dos tribunais superiores, que sufragaram as decisões do juiz de instrução, sabem-no os advogados de defesa, que conhecem o processo. Mas o labirinto é complexo.

As entrevistas de Carlos Alexandre tiveram o mérito de agitar as águas num país abúlico, que assiste impávido ao assalto à classe média – das poupanças ao património edificado –, enquanto se instala, no meio de sorrisos, um Estado policiesco.

Quando Mariana Mortágua – uma ativista radical formada na escola do trotskismo – é aplaudida num conclave do PS, depois de proclamar que «temos de perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro», é preciso pôr trancas na porta. A teoria do confisco ganha rosto e adeptos onde menos se esperava.

E quando, no mesmo encontro, António Costa defendeu a quebra do sigilo bancário para contas acima de 50 mil euros, a sintonia não podia ser mais perfeita. Estamos avisados.

 

Recorde-se, bem a propósito, o ‘ruidoso silêncio’ feito à volta da intervenção da juíza-conselheira Dulce Neto, vice-presidente do Supremo Tribunal Administrativo, para quem «a Administração Fiscal está cega demais na tentativa de arrecadar receita, deixando empresas e famílias exauridas».

Seria expectável que esta acusação frontal não caísse em saco roto. Mas ninguém ‘tugiu nem mugiu’.

O elevado volume de processos pendentes, citado por Dulce Neto, seria suficiente para deixar qualquer cidadão arrepiado. Mas não. O ‘circo mediático’ preferiu concentrar-se na modéstia das origens do juiz Carlos Alexandre, no seu discreto quotidiano, no mealheiro curto e – supremo atrevimento! – na revelação de que não tem fortuna pessoal, nem amigos pródigos.

A arena pública não reagiu aos sinais de alarme de Dulce Neto, mas correu a terçar armas por quem é suspeito de crimes graves. Repare-se na surpreendente liturgia de Francisco Louçã, de vestes rasgadas, contra «a mesquinhez da piscadela de olho (…)».

 

Teria sido mais útil que o atual líder-sombra do Bloco lesse primeiro, antes de falar, o juiz Rui Rangel, com larga folha no espaço mediático, que já defendia, em outubro do ano passado, premonitoriamente, que, «quando um juiz discute a justiça, dá o corpo às balas, sabe-se o que ele pensa».

Foi, aliás, o mesmo juiz que bateu forte e feio, em Março de 2010, no poder político – era, então, José Sócrates primeiro ministro –, denunciando que «quando a Justiça começa a investigar casos que entram em patamares que não o dos pobres e descamisados, o que se faz? Faz-se o discurso permanente de descredibilização para que, quando houver resultados, estes estejam contrariados por esse discurso político intencional».

Sem o saber, as suas convicções ajustam-se que nem uma luva à atual polémica, cujo principal fito não será estranho à descredibilização da Justiça e à fuga ao banco dos réus.

 

A PGR anunciou um novo prazo para completar o processo que envolve Sócrates, atendendo a «razões excecionais e fundamentadas». A iniciativa não foi seguramente leviana.

A nebulosa de muitos milhões que paira sobre Sócrates, Salgado e outros, com gravíssimas consequências, não pode ter o arquivamento como destino final. A ‘chave do segredo’ não andará longe. E isso enerva muita gente. Afinal, quem quer tra(m)var a Justiça?