Ali Ahmad Saïd Esber, filho de agricultores, e o mais velho de seis irmãos, nasceu em 1930, em Qassabin, uma pequena aldeia na costa da Síria, junto à cidade portuária de Lataquia. Embora o pai não pudesse dar-se ao luxo de mandá-lo para a escola, ensinou o filho a ler poesia e o Corão. Tido hoje como o mais influente poeta árabe do século XX e um dos grandes intelectuais do Médio Oriente, Ali Ahmad Saïd Esber, ou Adonis, não esquece as suas origens e disse certa vez que, se fosse obrigado a descrever-se numa só palavra, essa seria “camponês”. A humildade pode ainda servir-lhe como um eco tardio dos tempos de infância, mas se estamos a falar dele foi porque cedo mostrou uma enorme audácia e há um episódio daqueles anos que abre a sua mitologia pessoal. Tinha 14 anos quando Shukri al-Kuwatli, o primeiro presidente da recém-independente república, visitou a cidade vizinha, Jableh, e o ainda jovem poeta insistiu em declamar para ele alguns poemas que tinha escrito de propósito para a ocasião. Impressionado com o talento do rapaz, o presidente perguntou-lhe quais eram os seus planos para o futuro. “Quero ir para a escola”, foi a resposta. No espaço de uma semana, ganhou uma bolsa para estudar no liceu francês de Tartus, uma cidade portuária no centro-sul do litoral sírio. Dali passou para a Universidade de Damasco, onde estudou os filósofos alemães e, além de ter lido a poesia árabe clássica, descobriu Baudelaire e Rimbaud.
Todos os anos, por esta altura, Adonis – o pseudónimo que escolheu aos 19 anos depois do fracasso em conseguir publicar os seus poemas com o nome que os pais lhe deram –, surge no topo das listas das casas de apostas para o Nobel da Literatura, prémio que, contrariando a tendência, não antecipa qualquer listagem de eventuais candidatos. Depois de o anúncio do prémio ter, este ano, sido atrasado em relação ao que tem acontecido nas últimas edições – o que, segundo o porta-voz da Academia Sueca, Per Wästberg, se ficou a dever meramente a razões do calendário das reuniões dos 18 membros da instituição a quem cabe escolher o premiado – hoje os noticiários de todo o mundo irão dizer o nome de um escritor e, nas próximas semanas, um fascínio global pela sua obra será encenado de forma mais ou menos produtiva. Mas, com toda a publicidade, o certo é que mesmo a Academia Sueca sabe das dificuldades em montar a sua claque por trás de um poeta, tentando popularizá-lo. A entrega do galardão, em 2011, a Tomas Tranströmer quebrou um longo jejum na atribuição do mais prestigiado prémio literário à poesia, mas qualquer censo nos dirá que, mesmo entre o público que lê, o seu nome continua a ser uma distante, como impronunciável, estrela na constelação dos escritores, e os seus versos prosseguem a sua estupenda existência quase secreta. Portugal, que só tinha visto uns raros poemas dele alinhados numa ou outra publicação panorâmica, ganhou então uma antologia de 50 poemas, traduzidos por Alexandre Pastor e publicada pela Relógio D’Água, que teria sido um começo auspicioso se houvesse dado lugar a uma reunião mais abrangente da sua obra. De resto, só um pequeno livro de memórias acompanhado de mais alguns poemas. O único texto verdadeiramente relevante sobre a obra de Tomas Tranströmer que chegou à nossa língua foi publicado numa marginal revista literária – Cão Celeste, n.º7 – traduzido do espanhol, é assinado pelo poeta e crítico espanhol José Ángel Cilleruelo.
Adonis, deste ponto de vista, já leva vantagem, uma vez que, mesmo sem o Nobel, chegou recentemente, ainda que com a máxima discrição, às nossas livrarias: Em setembro, a Porto Editora lançou “Violência e Islão”, uma longa entrevista feita ao escritor por Houria Abdelouahead, e há dias foi a vez da Dom Quixote lançar entre nós a sua primeira antologia poética, “O Arco-Íris do Instante”. Traduzida por Nuno Júdice, que assina um tão breve quanto insatisfatório prefácio, é uma aposta que não deixa de ser muito louvável, embora se deva notar que é bem mais gratificante a aproximação que se pode fazer ao poeta através da antologia poética publicada, em 2012, no Brasil, que além de traduzida diretamente do árabe por Michel Sleiman, é precedida de um excelente prefácio assinado por Milton Hatoum.
Como refere o escritor brasileiro, descendente de libaneses, “Adonis é uma fábula fenícia que se irradiou na literatura da Grécia antiga com a força e a complexidade dos grandes mitos. Nascido de uma árvore, Adonis tornou-se para os gregos um símbolo do mistério da natureza: um deus da vegetação e da fertilidade, ligado ao ciclo de nascimentos, mortes e renascimentos”. Hatoum adianta ainda que a escolha deste pseudónimo não é um ato de imponência vazio, mas é um claro prenúncio do que viria a ser a sua obra. Tão cedo, e com a simples escolha de um nome, o poeta “introduziu na região do Islão uma dimensão mítica e pagã, que reúne a literatura e o saber de duas culturas do Mediterrâneo”.
Num mundo em que se assiste a uma pilhagem gratuita dos símbolos da cultura clássica pelo marketing – essa ideologia falsamente inócua que triunfou em toda a linha nos nossos dias, assimilando e subjugando a si a própria cultura (basta pensar que a deusa que na antiga mitologia grega personificava a ideia de vitória é hoje refém da marca que mais ténis vende em todo o mundo), é particularmente inspiradora a forma como na obra poética e crítica de Adonis se percebe a forte repercussão desse elo cultural.
Convém também referir que, apesar da importância revolucionária da sua obra, sendo-lhe atribuído um papel pioneiro no modernismo árabe, comparável ao que teve T. S. Eliot no mundo anglófono, Adonis não está entre os poetas mais amados no mundo árabe. O palestiniano Mahmoud Darwish, por exemplo, está muito mais próximo da ideia do poeta como voz de um povo, e neste caso um dos mais vitimados da histórica recente. Mas Adonis é, sem dúvida, mais admirado. Samuel Hazo, o poeta que traduziu para inglês um dos seus livros, garante que “existe uma poesia árabe antes de Adonis, e uma poesia árabe depois de Adonis”.
“Os manuais escolares na Síria dizem todos que eu estraguei a poesia”, notou com humor há uns anos o poeta, e isto deve-se ao papel renovador da sua obra, à forma como introduziu algumas das mais importantes conquistas formais do modernismo ocidental na poesia árabe. De resto, Adonis é um secularista convicto, alguém que soube preservar uma mordaz distância crítica tanto face ao Oriente como ao Ocidente. Não se trata, por isso, de uma figura agenciável e se alguns veem a sua poesia como uma poesia do exílio, ele não renega esta etiqueta. “Qualquer artista é um exilado na sua língua”, disse numa entrevista ao “The New York Times”. E, transportando o eco rimbaudiano para um universo multicultural, acrescentou: “O outro faz parte do meu ser interior.”
Em 1956, depois de passar um ano na prisão por atividades antigovernamentais, Adonis fugiu para Beirute (Líbano) – segundo Hatoum, “a capital árabe mais aberta à cultura do Ocidente e ao debate e confronto de ideias” –, vivendo ali nas duas décadas seguintes. Deixou claro que o seu desejo era permanecer em Beirute, mas a guerra civil não lho permitiu. Durante a invasão israelita do Líbano, em 1982, o quarto do poeta foi bombardeado enquanto ele estava sentado com a mulher, Khalida, na sala de estar. Um ano depois mudou-se para Paris, preferindo “o inferno do exílio” ao “inferno do dia-a-dia” nos países árabes.
Se pode parecer um exagero a descrição da sua vida desafogada enquanto professor de literatura na capital francesa, os poemas de Adonis testemunham a angústia de se sentir desterrado, que agrava a solidão ao ponto de a sentir como uma doença, enquanto, por outro lado, o assombram as fatwas que foram emitidas contra ele. “Somos todos vistos como renegados e antimuçulmanos, estamos todos em listas de pessoas a abater”, disse ao “The New York Times”, referindo-se aos intelectuais árabes que se batem pelo secularismo.
Profeta pagão
Um excecional cultor do poema em prosa, Adonis entende que é imprescindível a poesia não alimentar as preconceções que a cercam. Nesse sentido, existe sempre um desafio à expectativa do leitor. Sem deixar de recorrer ao imaginário místico da poesia clássica árabe, a radicalidade da sua obra, que tantas vezes assume um tom profético, é acompanhada de uma experimentação no estilo e na forma, impedindo a sua poesia de cair em fórmulas.
“Eu sou um profeta pagão”, costuma dizer de si mesmo, uma afirmação que, juntamente com o pseudónimo, é usada como motivo de chacota por parte dos seus críticos. Quanto aos poetas que se lhe colocam como rivais, Adonis diz que se limitam “a prosseguir a tradição com pequenas variações, ao passo que eu sou a rutura com o passado, sou eu quem está a revolucionar a ordem das coisas, e, no fim, é isso o que conta”.
Como nota o crítico Adam Shatz, ele consegue, ao mesmo tempo, refletir a desolação espiritual do mundo árabe, a dança existencial do eu e do outro e as sensações inebriantes que balançam entre a loucura e o êxtase erótico. Para Adonis a poesia é uma arte que balança a vida para o desassossego, é “uma pergunta que faz nascer outra”. E esta é uma noção que assume por si só um caráter subversivo no mundo árabe.
Questionado sobre o motivo de tanta poesia árabe se conformar com exercícios de didatismo, o poeta responde que se trata de “uma tradição, que surge com o Islão, e que adaptou a poesia como veículo ideológico muito antes de isto ter sido feito pelo comunismo”. Noutra instância referiu que “a poesia não pode ser feita para se adequar a uma religião ou a uma ideologia. Ela oferece aquele conhecimento que é explosivo e surpreendente”. Hatoum lembra que, tendo sido “autor de estudos de poética árabe e de antologias da poesia árabe de todos os tempos, Adonis descobriu no melhor da poesia dos antigos o mesmo ímpeto revolucionário e renovador que marca a literatura universal em busca da modernização. Assim, em vez de considerar o classicismo um bloco engessado, ele vê nos poetas e críticos antigos saturação, questionamento, rompimento e inovação”.
Seguindo esta reavaliação do legado árabe, o poeta sírio dedicou-se a “uma nova leitura interpretativa: uma leitura à luz da contemporaneidade”, que lhe permitiu encontrar o seu próprio caminho construindo na sua obra um intenso diálogo entre a poesia do Oriente e do Ocidente. Disso mesmo ele dá nota no seu livro “Introdução à poesia árabe”, de 1971: “Foi a leitura de Baudelaire que mudou a minha compreensão de Abu Nuwas e revelou a sua particular qualidade poética e modernidade; a obra de Mallarmé esclareceu-me quanto aos mistérios da linguagem poética de Abu Tammam e a dimensão moderna dessa linguagem. A leitura de Rimbaud, Nerval e Breton conduziu-me à descoberta da poesia dos escritores místicos em todo o seu esplendor e singularidade, e a nova crítica francesa indicou-me a novidade da visão crítica de al-Jurjani.”
A ocidentalização do oriente
“Vivemos numa cultura que não abre margem para as questões, para as dúvidas. Já tem todas as respostas formuladas. Nem Deus tem nada de novo a dizer!”, disse o poeta na entrevista que deu a Adam Shatz, no “The New York Times”. Segundo ele, aquilo de que o mundo árabe precisa hoje, mais do que tudo, é de “uma revolução da subjetividade” que venha emancipar as pessoas face à tradição. Até que essa revolução interior ocorra, os árabes estão condenados a experimentar uma modernidade em segunda mão, numa perigosa mistura de consumismo vazio, eleições fraudulentas e Islão radical. “Culturalmente falando, nós já fazemos parte da cultura ocidental, mas apenas enquanto consumidores, não enquanto criadores”.
Quanto ao poder da poesia para afetar o mundo, aos 86 anos, não restam ao poeta grandes ilusões. Num encontro com estudantes da Universidade do Michigan (EUA), em 2010, uma aluna questionou-o sobre a relevância da poesia no mundo atual. “A poesia não é apenas uma forma de discurso pretensiosa e elitista, incapaz de transformar seja o que for?” Adonis concordou que a poesia não tem como mudar a sociedade, e que apenas pode “alterar a noção das relações entre as coisas”. Mas quanto à ideia de que a poesia se terá tornado de algum modo uma arte alheada, insuficientemente popular para se mostrar relevante, o poeta notou que “a poesia que chega a todas as pessoas é essencialmente superficial. A verdadeira poesia requer empenho porque obriga o leitor a tornar-se, tal como o poeta, criador. Ler não é simplesmente ficar do lado do recetor”. E, sorrindo, acrescentou: “Sugiro que altere a sua relação com a poesia e com a arte em geral.”