O homem de quem se fala…

Somos um país pequeno e periférico, com séculos de História feita de muitos feitos, e um povo que reproduz hoje fraquezas que sempre o estigmatizaram, e forças que, a espaços, o engrandeceram. Dizer que isto faz parte do ADN dos portugueses é reconhecer uma banalidade.

Os demónios da dívida sempre nos perseguiram, o gosto pela fachada – pelo faz-de-conta – é uma idiossincrasia colada à pele. Entre a depressão e a euforia, o português nunca sabe, por feitio e temperamento, qual será o seu estado de alma no dia seguinte. É um estranho movimento pendular.

Por isso, o dia seguinte à eleição de António Guterres para secretário-geral da ONU tornou-se algo tão transcendente que os media, sem exceção, abriram alas para deixar passar toda a gente que quis mostrar-se ‘guterrista’ e jurar admiração pela proeza internacional do nosso compatriota.

O jornalista João Miguel Tavares interrogava-se, certeiro, num dos raros textos publicados fora da órbita dos elogios ditirâmbicos, ao estilo norte-coreano, se «isto foi uma eleição ou uma canonização?», e concluía, mordaz, que «Portugal já tem um Santo António. Não precisa de outro».

O interminável desfile de lugares comuns, que ocupou os estúdios, foi algo equivalente à febre que se apoderou das antenas no recente Europeu de futebol.

A escolha, por mérito, de António Guterres para um lugar cimeiro da politica internacional explica mas não legitima que se convoquem fanfarras em delírio pacóvio, nem que se omitam da biografia sete anos de governo que não correram bem (e que o aconselharam a afastar-se do ‘pântano’).

É justo, contudo, dizer-se que quando se compara Guterres com alguns epígonos da geração atual do PS, alcandorada às vitualhas da mesa do poder, não se consegue evitar um arrepio de susto.

Parece uma fatalidade: partirmos e sermos melhores lá fora do que cá dentro. A diáspora tem sido uma permanente fonte de ensinamentos. E sobram os casos de sucesso entre tantos milhares de emigrantes, dispersos pelo mundo, recompensados por aptidões que, em Portugal, não desabrocharam.

O país estagnou num mar de funcionalismo público, gerador de burocracia para se justificar – e de desigualdades, quando comparado com as incertezas do setor privado.

Essa máquina gigantesca e omnipresente tem emperrado a livre iniciativa e atua como um bulldozer que nivela o terreno, mas o deixa infértil.

Guterres conquistou o lugar que ambicionou, preparando-se com afinco e tempo, num patamar que implicou um crivo exigente e uma intensa campanha de bastidores, onde se fazem e desfazem compromissos, consoante as instruções das chancelarias.

Fez o pleno do Conselho de Segurança e foi consagrado na Assembleia Geral. Ganhou por aclamação. Mas não precisa de ser glorificado – nem agradece, decerto, andor e veneração.

Antes dele, outro português – que não se notabilizou, também, enquanto primeiro-ministro –, foi escolhido e cumpriu dois mandatos à frente da Comissão Europeia. Mas José Manuel Durão Barroso nunca teve à sua volta a unanimidade e a corte que incensa Guterres.

Bruxelas e Nova Iorque acolhem as sedes e os cargos símbolo da alta roda da política internacional.

Durão Barroso celebrizou a ‘tanga’ e entregou, de bandeja, o Governo a Pedro Santana Lopes, que abriu caminho ao desastre de José Sócrates.

Ao contrário de Guterres, a renúncia de Durão trouxe-lhe não poucos anticorpos. Talvez por isso, ainda que tenha pensado candidatar-se a Belém, nunca o confessou abertamente, embora o timing fosse propício.

Em contrapartida, Guterres era o candidato mais desejado pelo PS e o mais temido por Marcelo Rebelo de Sousa. O seu nome obteve um dos raros consensos entre António José Seguro e António Costa, quando ambos discutiam a liderança do PS e o PCP e o BE estavam no seu canto.

Guterres e Durão Barroso, não sendo ‘irmãos-siameses’ na fé ideológica ou no modus operandi, poderiam ter mudado a sorte da Presidência.

A Comissão Europeia e as Nações Unidas serviram de imãs irrecusáveis. Mas nem Durão mandou na Europa, sujeito ao eixo Paris-Berlim, vigiado por Londres, nem Guterres vai mandar no mundo, atravessado de conflitos regionais e de ambições globais.

Mas é inquestionável que Durão soube gerir influências, que beneficiaram Portugal, e Guterres há de saber exercer o diálogo – em que é exímio –, lançando pontes entre posições antagónicas, sem esquecer o importante papel euro-atlântico do seu país de origem.

Se Guterres e Durão não tivessem desistido de serem embarcadiços em navegação de cabotagem, fazendo-se à vida e ousando novos destinos, talvez o nosso futuro coletivo tivesse sido outro. Mas essa é uma história para os ficcionistas. O sucesso de ambos provou, afinal, que fizeram (e fazem) falta à política portuguesa.