A discussão que se segue seria impensável nos dias de hoje. Não só pelas características dos discursos como pela revolta de muitos deputados contra a possibilidade de passar a ser proibido fumar no hemiciclo e nas galerias da Assembleia da República.
«A proposta que apresentamos é controversa», avisou, logo no início da intervenção que abriu o debate, o deputado socialista Carlos Lage. A iniciativa visava acabar com o fumo na sala de sessões e foi discutida até à exaustão no dia 4 de outubro de 1984.
Carlos Lage – autor da iniciativa em conjunto com o arquiteto paisagista Leonel Fadigas – começou por garantir que a iniciativa não visava hostilizar os fumadores, mas sim permitir «uma atmosfera mais respirável, mais limpa, mais asseada». A linguagem, própria da época, era, porém, provocatória para os defensores do fumo. «Recentemente, lavaram-se as paredes da sala, alcatifou-se o chão, enfim, limpou-se o hemiciclo. Mal pareceria que agora, com nuvens espessas de fumo e com alguns dos senhores deputados que parecem chaminés, se permitisse sujar as paredes da câmara e estragar algumas das belas pinturas que aqui se encontram». Mas, continuava o deputado socialista, «não estamos só preocupados com a estética da sala, mas com a saúde das nossas vias respiratórias».
O Governo já tinha proibido o fumo em serviços do Estado e a Assembleia devia dar o exemplo, argumentava Lage, que, num registo bem-humorado, terminou a intervenção com a garantia de que sem fumo na sala melhoraria «a qualidade da intervenção» no Parlamento. «Numa atmosfera tão poluída, tão fumarenta, tão opaca, as próprias ideias também se tornam nebulosas».
Uma proposta sem dignidade
Começava assim o longo debate – que durou um dia inteiro – que dividiu quase todos os partidos. Vilhena de Carvalho, deputado da ASDI (um partido que nasceu da rutura entre um conjunto de deputados do PSD e Sá Carneiro) foi o primeiro a insurgir-se contra a proibição dos deputados fumarem. Vilhena de Carvalho garantiu estar preocupado com os colegas que «não estarão dispostos a fumar dos cigarros dos outros», mas argumentou que era preciso ter em conta «o equilíbrio psíquico que o cigarro proporciona».
O argumento mais pesado e que haveria de tomar conta de uma boa parte da discussão era, porém, o de que a proposta «não tinha dignidade regimental». O deputado da ASDI desafiava os atores da iniciativa a indicar «um único regimento de um único Parlamento onde figure uma norma proibitiva desta natureza». Quanto à ideia de que os deputados deviam dar o exemplo e seguir a proibição de fumar em locais públicos, Vilhena de Carvalho alegava que «quando o senhor deputado se dirige a uma repartição pública, ou quando entra num autocarro, permanece nesses lugares por escasso tempo. Ora, nós passamos aqui muitas horas seguidas». A solução seria instalar exaustores, mas nunca acabar com o fumo.
Os aplausos a Vilhena de Carvalho traduzem a divisão nas bancadas parlamentares. Deputados do PS, PSD, PCP, CDS e MDP/CDE aplaudiram. Das mesmas bancadas surgiram protestos contra o fumo na sala.
Carlos Lage não levou a sério a proposta para instalar exaustores. «O senhor deputado recomendou exaustores. Nós estamos exaustos e queremos que se proíba o fumo no plenário e não que se coloquem exaustores».
O ambiente, continuava o deputado socialista, tinha-se tornado irrespirável. «Há sessões que são verdadeiramente intoleráveis. Todos os senhores deputados estão recordados de sessões que fazemos aqui entre as 10 da manhã e as 2 ou 3 da madrugada, com as galerias repletas de público, com as bancadas da imprensa repletas de jornalistas, com esta câmara recheada com todas as altas personalidades da vida parlamentar e governamental, com os senhores funcionários, todos fumando horas e horas sucessivas».
A consequência, alertava o então vice-presidente da bancada dos socialistas, era que «a certa altura temos aqui um cogumelo de fumo, assim uma espécie de smog, como se sabe num nevoeiro verdadeiramente insuportável».
O equilíbrio psíquico entre o fumador e o cigarro
O ambiente descrito pelo deputado socialista, que cinco anos antes tinha apresentado um projeto de resolução no mesmo sentido, mas sem sucesso, não comoveu o deputado do MDP/CDE António Taborda. O parlamentar garantia que «a mais moderna teoria médica entende que há um equilíbrio psíquico entre o fumador e o cigarro, e que se esse equilíbrio for destruído pode trazer graves perturbações psíquicas».
António Taborda levou para o debate exemplos concretos: «Há um outro caso de um médico meu conhecido que deixou de fumar e dois meses depois teve um acidente cardiovascular… exatamente por ter deixado de fumar».
Os trabalhos foram interrompidos para almoço. A discussão, que da parte da manhã o deputado social-democrata Rocha de Almeida classificou como «surrealista», foi retomada quase às quatro da tarde. O deputado socialista Acácio Barreiros trouxe para o debate mais um argumento contra a proposta do seu colega de bancada: os deputados precisam de fumar para estarem concentrados. «Não se trata aqui de fazer viagens de autocarro, mas de trabalho que exige alta concentração e essa concentração, para muitos deputados, tem de ser acompanhada com fumo».
O debate motivou dezenas de intervenções. No PS, o partido com mais deputados e que governava o país numa aliança com os sociais-democratas que ficou conhecida como o Bloco Central, as divisões eram claras. Igrejas Caeiro foi dos mais severos na defesa dos não fumadores e aproveitou para se queixar do amigo e colega do lado que «a maior parte do tempo tem o cigarro parado com o fumo que corre para mim». E continuou: «Na realidade, os senhores deputados não fumam a maior parte do tabaco. Deixam que ele se queime para que nós o fumemos».
O debate aqueceu quando o ator e locutor de rádio garantiu que o médico o confundiu com um fumador, apesar de nunca ter fumado. Os deputados riram-se e o comunista Vidigal Amaro aconselhou-o a «mudar de médico, porque esse não serve». Igrejas Caeiro contestou a «intromissão» e lamentou estar condenado a conviver com os fumadores. «Temos de viver até com os criminosos sem o querer».
Carlos Lage retira a proposta «dececionado» com o debate
O debate terminou com autor da proposta agastado com toda a polémica provocada pela iniciativa. «Estou absolutamente dececionado com a delonga do debate e com muitas das intervenções que aqui foram feitas». Não era para menos. A poucos minutos do final do debate, o social-democrata José Silva Marques alertou que «a proposta de aditamento para alteração do Regimento que foi apresentada não tem é natureza regimental». Um argumento já utilizado por muitos outros parlamentares e que levou Lage a anunciar que iria retirar a proposta e substituí-la por um projeto de resolução com o mesmo conteúdo.
O deputado Lopes Cardoso resumiu o sentimento de muitos parlamentares no final do dia: «não intervirei mais neste debate, que penso ser perfeitamente inútil».
Os deputados continuaram a fumar no hemiciclo. Só dois anos depois deste debate, o Parlamento aprovou um projeto de resolução, da autoria de António Capucho, do PSD, Carlos Lage, do PS e da deputada Maria Santos, independente, que previa «a proibição de fumar na sala e nas galerias da Sala das Sessões da Assembleia da República». O diploma foi aprovado com os votos a favor do PSD, PS, PRD, PCP, CDS, MDPCDE. 21 deputados votaram contra e sete abstiveram-se.