Isabel Moreira: ‘Colapsei no dia em que a co-adoção foi chumbada’

Entrevista da deputada do PS ao SOL

O parlamento vai começar a discutir na próxima semana o Orçamento do Estado. O PCP e o BE já garantiram que iriam votar a favor. Acredita que o Governo do PS vai durar os quatro anos da legislatura com o apoio dos partidos à sua esquerda?

Lembro-me dos tempos em que diziam que ia durar uns meses. O primeiro orçamento correu muito bem. Este segundo orçamento está apresentado e é equilibrado. Cumpre o programa do Governo e os compromissos internacionais. É, portanto, um orçamento que não devia deixar espantado um social-democrata ou um democrata-cristão. É um orçamento feito de escolhas. 

A escolha foi aumentar impostos…

Temos compromissos para cumprir e temos de fazer escolhas. Para nós é imperativo combater a pobreza infantil, devolver rendimentos e aumentar as pensões. Para nós são muito importantes as contribuições sociais que realmente combatem a pobreza. Fazer isto e cumprir os limites do défice implica fazer escolhas. É evidente que não temos o nível de fiscalidade pré-troika. Do ponto de vista geral a carga fiscal desce, mas é um orçamento de escolhas. Diziam que era um orçamento das esquerdas radicais, que era um orçamento bolchevique, que vinha aí o PREC, que vinha aí o estalinismo e depois olhamos para o orçamento e qualquer pessoa com o mínimo de seriedade, qualquer social-democrata ou democrata-cristão o aprovaria sem hesitar. Estas são as medidas tipo PREC? 

Mas não foi possível acabar com a austeridade. A sobretaxa, por exemplo, vai manter-se.

O que defendia a direita era que acabasse em 2019 e previa um corte nas pensões de 600 milhões, e é bom que nos lembremos o que estaria a acontecer se tivéssemos um governo de direita. Teríamos a austeridade virtuosa que nos levou aos resultados que são conhecidos. É bom comparar o que seria o orçamento de direita e o que é este. Este é o orçamento possível e o orçamento menos à direita possível.

Não é um orçamento de esquerda?

É um orçamento de esquerda. A esquerda não é uma coisa abstrata. A esquerda decide nas circunstâncias que tem de enfrentar. 

O Bloco de Esquerda e o PCP não acham que seja um orçamento de esquerda.

Eu falo como socialista. A esquerda não é uma coisa abstrata. O PS faz um orçamento perante circunstâncias concretas e perante a enorme pressão que é cumprir os seus compromissos internacionais. Ainda assim faz um programa social de devolução de rendimentos e de prestações sociais e de devolução de pensões. Tem uma verdadeira agenda de esquerda. A esquerda não é uma coisa abstrata que vive nas nuvens. Isso é uma coisa utópica.

O PS já viveu muitas fases. Julga que este PS de António Costa está mais à esquerda?

Está mais à esquerda do que o PS de António Guterres ou de José Sócrates.

Foi muito crítica em relação ao Presidente Cavaco Silva. Aprecia o estilo deste Presidente da República?

O Presidente da República tem tido uma relação correta com todos os órgãos de soberania. Nunca excedeu os seus poderes. Não sou, pessoalmente, apreciadora de um modo diário de agir, que gera simpatia imediata, mas que contribui para desinstitucionalização da função.

Qual foi a batalha que travou aqui no Parlamento e que lhe deu mais gozo vencer?

Três. A ida ao Tribunal Constitucional para a reposição do roubo dos subsídios aos funcionários públicos, pensionistas e reformados. Era para mim evidente a inconstitucionalidade e, por outro lado, era cristalino que, apesar do memorando da troika, era possível fazer escolhas. Aquele primeiro orçamento demonstrou claramente qual iria ser o rumo do governo liderado por Pedro Passos Coelho. Elegeram uma classe para pagar a crise. O que é inadmissível do ponto de vista político e, no caso, também era inconstitucional.

E as outras duas…

Foi marcante a aprovação da adoção de crianças por casais do mesmo sexo e a procriação medicamente assistida para todas as mulheres e sem discriminações. E julgo que a imprensa não percebeu esta última vitória e isso fez-me muita impressão. As notícias foram todas sobre a gestação de substituição, que é uma lei muito importante, mas julgo que a imprensa não percebeu que o último reduto de discriminação legal era o acesso à inseminação artificial por todas as mulheres. Só as mulheres casadas ou unidas de facto com um homem é que podiam engravidar através de inseminação artificial. As mulheres que não tivessem a tutela de um homem se o fizessem eram criminosas. 

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E qual foi o momento mais difícil?

Foi o dia do chumbo da co-adoção. Era um diploma minimalista que pretendia apenas reconhecer famílias monoparentais já existentes, famílias que têm duas mães ou dois pais e em que um deles não era reconhecido legalmente. Foi aprovado na generalidade e na especialidade todas as associações de referência mundial e as associações portuguesas defensoras dos direito das crianças defenderam não só a co-adoção, como a adoção. E tivemos o PSD a tentar referendar crianças. O PSD fez um processo de bullying político e tivemos deputados que dormiram bem depois de mudar o seu sentido de voto. Estas crianças viram em direto a Assembleia da República ter a coragem de dizer: ‘a tua mãe não é tua mãe e o teu pai não é teu pai’. Nesse dia eu devo dizer, sem embaraço, que colapsei.

Colapsou como?

Emocionalmente colapsei. Vieram as férias e tive de me isolar e sair do país durante uns tempos. Colapsei. Não queria acreditar no grau de desumanidade. Como é que era possível o jogo político ser mais forte do que assegurar a segurança jurídica e os laços afetivos permanentes de crianças desprotegidas.

Não se livra de ser vista nesta luta como estando mais preocupada com os direitos dos homossexuais do que das crianças.

Não sou vista assim. Pode ter a certeza que as famílias LGBT, que eu conheço bem, todas sabem que eu estou a defender os direitos das crianças que são filhas das pessoas LGBT. É todo um mundo interativo. Um mundo que existe. Mas há pessoas que acreditam, apesar de toda a evidência científica contrária, que é preferível uma criança estar institucionalizada do que ser adotada por um casal do mesmo sexo se esse casal for um casal adequado.

As mulheres são discriminadas na política?

As mulheres são discriminadas no espaço público e privado todos os dias. As mulheres estão 30 % representadas porque há uma lei que impõe que estejam representadas no Parlamento e estão no limite em que têm que estar. A representação das mulheres ao nível do poder local é chocante. O Governo teve oportunidade de nomear uma administração da Caixa Geral de Depósitos – o mesmo Governo que quer impor uma lei com quotas para empresas cotadas no PSI 20 – e não nomeou nenhuma mulher. 

Mas também há mulheres machistas e homens feministas.

Homens feministas conheço muito poucos. Claro que há mulheres terrivelmente machistas.

Foi muito crítica em relação às alterações que o Governo quer fazer à lei do tabaco. Julga que o Governo se excedeu?

O Governo fez bem em requerer a baixa da proposta de lei à especialidade sem votação para que se possa criar um grupo de trabalho no seio do qual se possa corrigir um diploma que não estava em condições de ser votado. O diploma tem vários problemas graves.

Quais?

Não está em causa apenas cigarros e vapor, mas o modelo de sociedade em que vivemos. Está em causa a liberdade e a saúde pública e não podemos proibir comportamentos lícitos – é bom recordar que fumar é lícito – quando não está em causa o prejuízo de terceiros. O diploma, por exemplo, proíbe que se fume ao ar livre. Depois contém proibições simbólicas, isto é, proibições que não se destinam a proteger terceiros, mas a dar o exemplo. Ora, o Estado não pode impor um modelo de homem virtuoso no qual temos de encaixar, pelo contrário, cada um de nós é o que quer ser, desde que não prejudique terceiros.