Em 794 o Imperador Kamnu transferiu a capital e a corte de Heijo (actual Nara) para a cidade de Heian (actual Kyoto), depois de uma tentativa falhada de mudar a sede imperial para Nagaoka. Heijo era a sede do trono imperial desde 710, quando a Imperatriz Gemmei aí a estabeleceu, inspirada em Changan (na altura a capital da Dinastia Tang), e continuou depois seu reinado, contrariando a tradição de mudar a capital em sintonia com a morte do monarca. Esta decisão vai permitir o desenvolvimento de uma burocracia governamental japonesa e dar início ao período Nara (710-794). Com um sistema de governo cada vez mais complexo, modelado também na cultura política chinesa, a escrito e o registo tornaram-se necessidades públicas. E assim, graças a este influxo, surgiu a primeira literatura japonesa, com obras como Kojiki, composto por O no Yasumaro, “As Crónicas do Japão” (Nihon Shoki) ou “A Colecção das Dez Mil Folhas” (Man’yoshu), uma compilação de poesia japonesa.
Também a mudança da capital para Heian, longe de uma mera relocalização geográfica do governo, teve um profundo significado na história do Japão, dando início ao período Heian (794-1185), e estabelecendo aquela que foi a sua capital até que a sede imperial mudou para Tóquio em 1868, com a restauração Meiji. Aliás, o sistema de poder que a que a restauração Meiji veio por fim, devolvendo a soberania plena ao Imperador, teve, em parte, a sua origem no período Heian com a ascensão dos samurais junto do poder Fujiwara que detinha a soberania efectiva. Esta classe militar irá defender os destinos do Japão e servir de suporte ao poder dos senhores feudais e dos xoguns até à era Meiji, já em pleno século XIX.
O período Heian é o derradeiro capítulo da época clássica japonesa e uma das épocas mais ricas e interessantes da cultura japonesa, em especial da sua literatura. É a partir de meados deste período que a poesia propriamente japonesa (waka, poema japonês, sendo wa uma das palavras para japão) vive um novo período de fulgor, depois de ter surgido no período Nara com o primeiro poema em escrita japonesa.
Foi a partir dos caracteres chineses que o japonês passou de uma língua oral para uma língua escrita e, muito por isso, obviamente ligado à forte influência que a cultura chinesa desempenhou no período clássico nipónico, os primeiros autores japoneses escreviam não na língua que falavam, mas no chinês praticado pela burocracia governamental e pela corte educada. O Kojiki, escrito durante o período Nara, inclui partes escritas em chinês e partes escritas em caracteres chineses mas que pretendem representar sons da língua japonesa, independentemente do seu significado na língua de origem, o que, quando despido da sua correspondência fonética, produz uma espécie caótica de chinês.
Mas enquanto os homens da nobreza japonesa escreviam kanshi (poesia escrita em chinês) e kanbun (prosa em chinês) e eram educados simultaneamente em escrita chinesa em escrita silábica japonesa (kana), as mulheres aprendiam apenas kana. Isto permitiu-lhes ocupar um lugar de destaque na literatura japonesa logo desde o seu período clássico. Da era Heian destacam-se Murasaki Shikibu, a autora de “O Romance do Genji” (escrito por volta do século XI e editado em Portugal pela Relógio d’Água em dois belíssimos volumes), e a sua Némesis Sei Shonagon, autora do “Livro de Almofada”, o mais famoso dos zuihitsu, palavra que pode ser traduzida como ensaio, mas que corresponde a um estilo literário japonês onde predomina a recolha pessoal de pensamentos, pequenas histórias e impressões, uma espécie de parente longínquo dos blogues. Data também desta época o diário (nikki) de Sugawara no Takasue no musume (à letra a filha de Sugawara no Takasue), mais conhecido como “Diário de Sarashina” no ocidente graças à tradução Ivan Morris que a designa a sua autora como Lady Sarashina. O papel das mulheres era de tal forma preponderante na literatura japonesa escrita em kana que um dos diários mais famosos desta época, o Tosa Nikki, publicado anonimamente como um diário de uma viagem entre Tosa e Heian, escrito por uma mulher, foi afinal de contas escrito pelo poeta Ki no Tsurayuki, que pretendia demonstrar que era possível escrever boa literatura em kana, contra a tradição chinesa ainda maioritariamente praticada junto da aristocracia governamental masculina.
A poesia era, contudo, a espinha dorsal da cultura literária deste período. Foi, aliás, em meados desta época, por volta da publicação da grande compilação “Kokinshu”, que a palavra waka ganhou um segundo significado, passando a expressar não um conjunto de estilos de poesia escrita japonesa, mas antes um tipo específico de poema, com uma métrica de 5-7-5-7-7, e que é um parente ancestral do haiku, aquele que é hoje em dia o tipo de poema com que a grande maioria dos leitores mais identifica o versejar em japonês.
Importa tudo isto para entender que quando dizemos que o haiku é típica e inultrapassavelmente japonês é porque nasce numa cultura literária que, depois de um impulso inicial nos ombros da literatura chinesa, se fechou sobre si própria, em sintonia com o profundo isolacionismo político praticado pelo Japão ao longo de séculos, praticamente até ao século XIX. Só por isso, a tarefa de traduzir um haiku seria já por si espinhosa. Todas as línguas têm as suas subtilezas impossíveis de traduzir, porque estão intimamente ligadas ao seu som ou à memória histórica que carregam. Contudo, o haiku é uma tempestade perfeita de nuances, numa língua e numa cultura já de si particularmente subtis e com pouca permeabilidade às influências externas durante o seu longo período feudal. Só no século XIX se começaram a notar na literatura japonesa as influências da cultura ocidental, dois séculos após o surgimento do haiku. Também só no século XIX o estilo haiku começou verdadeiramente a chegar à cultura ocidental, graças ao trabalho de Basil Hall Chamberlain e Koizumi Yakumo. A esta tempestade perfeita de subtilezas, a que R. H. Blyth chamou “uma canção sem palavras” na apresentação dos seus monumentais quatro volumes sobre este estilo de poema japonês, corresponde uma impossibilidade última de tradução que deve nortear o investimento de qualquer autor que pretenda passar para a sua língua um haiku.
Não sendo a primeira versão de Matsuo Bashô (1644-1694) em português – Jorge de Sena, Jorge Sousa Braga e Luísa Freire já percorreram antes este caminho –, “O Eremita Viajante” (Assírio & Alvim) é a primeira recolha quase completa da poesia deste autor, mais conhecido em vida como praticante do género colaborativo haikai no renga, mas cujo legado mais duradouro é enquanto mestre maior da simplicidade laminar e enganadora do poema japonês em três versos de dezassete sílabas com métrica de 5-7-5.
Um dos primeiros aspectos a destacar acerca deste volume está intimamente ligado à Assírio & Alvim, que depois de um período de incerteza indissociável da sua mudança para a Porto Editora e da perda de Herberto Helder, a jóia da coroa no que à poesia portuguesa diz respeito, para a sua empresa-mãe, parece estar a reassumir o seu papel junto da Relógio d’Água e das pequenas editoras na publicação de poesia, tanto na portuguesa (o primeiro volume da obra poética de Cinatti, Adília Lopes, Luís Filipe de Castro Mendes, Daniel Jonas, Daniel Faria, entre muitos outros) como nas traduções (Saint-John Perse ou Rabindranath Tagore, por exemplo). A divulgação de poesia japonesa em Portugal tem sido, aliás, um património quase exclusivo da Assírio & Alvim, algo estranho quando pensamos no papel que os navegadores portugueses desempenharam na história do Japão, deixando um profundo impacto na memória nipónica e que se sentiu até muito depois de um extremar do isolacionismo japonês. “O-Gin”, um conto de Ryunosuke Akutagawa (1892-1927) sobre uma família de missionários portugueses do século XVII, é disso testemunho. Akutagawa prefere, aliás, utilizar diversos termos que correspondem a palavras portuguesas passadas foneticamente para o japonês, como bapuchizumo (baptismo), zesusu (Jesus) ou haraiso (paraíso), apesar de todas elas terem correspondente no japonês moderno.
Traduzir qualquer haiku é uma tarefa arriscada e, talvez mesmo impossível. A exactidão da forma dificilmente se consegue transpor para o português sem sacrificar a fidelidade às palavras e, sem a exactidão da forma, grande parte da armadilha de simplicidade do poema na sua língua original se esfuma. Por exemplo, cada haiku deve incluir num dos seus três versos um kigo, uma palavra ou ideia associável a uma estação do ano. Um exemplo simples: para os japoneses a palavra cigarra tem uma particular ligação agradável com paisagens de verão. Para um português esta ideia poderá não parecer estranha, mas em muitas outras culturas a cigarra pouco mais será do que um ruído que incomoda. Muitas destas palavras-estação perdem a sua função quando passadas para qualquer outra língua e afastam o leitor para perigosamente longe do ponto de partida. Mas as dificuldades vão muito para lá destes exemplos.
Traduzir Bashô, provavelmente o melhor praticante do género, é o Risco entre os riscos. Também por isso, Joaquim M. Palma, ciente da impossibilidade última de traduzir um haiku, apresenta o seu trabalho como versão, que é, afinal de contas, a tradução possível para o português. Não se pense, contudo, que se trata de um trabalho menos exigente. Ao passar Bashô para outra língua, um bom tradutor deve ser muito menos isso e muito mais leitor-autor. A compreensão da origem e a constante comparação com outras soluções de tradução, se possível no maior número de línguas possíveis, é fundamental e o longo ensaio introdutório de Joaquim M. Palma evidencia esse trabalho. Mas a parte do autor está noutro lugar, na capacidade invejável de compreender a linguagem poética de Bashô e de a converter naquilo que seria, indubitavelmente, um poema na língua de chegada capaz de deixar a mesma deliciosa impressão capturada no japonês. Este é o verdadeiro teste do bom tradutor de haiku, o conseguir ser também autor, e Joaquim M. Palma supera-o com distinção.
"O Eremita Viajante", de Matsuo Bashô
Ano de edição ou reimpressão: 2016
Editor: Assírio & Alvim
Páginas: 424
Tradução: Joaquim M. Palma
p. 86
a vida demora tanto
como um aguaceiro de inverno
diz Sôgi
p. 88
polvilho os meus ouvidos
com incenso
e assim ouço melhor o cuco
p. 145
quero contemplar uma flor
à primeira luz do dia
para ver a face de um deus
p. 218
o coração viajante não se enraíza
antes quer ser
braseira ambulante