A voz da América

Só escrevi nos últimos meses dois textos sobre as eleições americanas – e mesmo assim sobretudo baseados em impressões. Não tenho conhecimentos para filosofar longamente sobre o tema, como fazem muitos dos nossos compatriotas.

No primeiro texto levantava a seguinte questão: se tudo está bem na América, se a presidência de Obama foi globalmente um sucesso, como se compreende que haja tanta gente a desejar uma mudança radical?

No segundo texto dizia que, enquanto Trump representava a América, Hillary personalizava a mentalidade europeia.

Transcrevo: «Trump representa o espírito fundador da América, naquilo que ele tinha de violento, excessivo, injusto, mas também criativo e enérgico. Os colonos europeus que ocuparam a América abriram caminho a tiro contra os índios. E defendiam-se a tiro dos bandidos e dos intrusos que os queriam roubar ou ocupar-lhes as terras. Tinham uma vida rude, mas depois divertiam-se nos saloons a beber e cortejar as mulheres. Ora Trump transporta consigo este primarismo dos colonos. É defensor da posse de armas, para os americanos se poderem defender dos agressores. É hostil em relação aos ‘intrusos’ – os emigrantes muçulmanos ou hispânicos. E tem um discurso machista, próprio de homens para quem as mulheres são um divertimento. Estamos a ver Trump como dono de um saloon no farwest, atirando piadas brejeiras às bailarinas e apalpando-lhes o rabo».

Ora, Hillary Clinton representava exatamente o oposto – escrevia eu.

«Hillary representa a europeização da América. Parece a própria encarnação do politicamente correto. Não diz nada que pareça mal. Aquilo que a América tem de excessivo, violento, imoral e injusto, Hillary quer amaciar. Defende o Estado assistencialista, regulador e corretor das desigualdades».

A vitória de Trump significou, pois, um regresso da América às origens, ao espírito fundador.

Os comentadores ocuparam-se muito a analisar – e ridicularizar – o que Trump dizia, os disparates que deitava da boca para fora. Ora isso interessava pouco. O que interessava nesta eleição não era o que Trump dizia mas o que Trump representava. Ou seja, o anti-político, o anti-politicamente correto, o anti-globalização, o anti-establishment. Trump não era bem o que as pessoas desejavam mas sim o que as pessoas rejeitavam.

As pessoas queriam uma mudança radical e Trump prometeu-lhes uma mudança radical.

A vitória de Trump foi também uma vitória contra os media, acusados de não refletirem o que as pessoas pensam. E assim é. No mundo desenvolvido, há um grande divórcio entre os media e as pessoas. Os media fazem hoje parte do establishment e defendem-no com unhas e dentes. Nesta campanha, foi-se ao ponto de os jornais abandonarem os princípios de isenção a que estão deontologicamente obrigados para defenderem abertamente Hillary. E as pessoas não gostaram disso. Não querem sentir-se marionetas sem opinião.

Aliás, essa atitude dos jornalistas conduz a que avaliem mal a realidade. O correspondente de uma TV portuguesa dizia três dias antes das eleições que Trump se arriscava a ter uma das derrotas mais humilhantes e fulminantes da história dos Estados Unidos.

Neste sentido, era bom que a Europa também parasse para refletir. Tenho escrito repetidamente que, ou os partidos do establishment conseguem assumir um discurso que vá ao encontro das inquietações das pessoas, fugindo do politicamente correto, ou os políticos fora do sistema, à esquerda e à direita, começarão a ganhar eleições.

Uma última nota sobre as campanhas. Julgo que a máquina democrata, que dispunha de mais dinheiro e de mais meios, do apoio dos media, do apoio dos intelectuais, etc., cometeu um erro fatal: ter chamado à fase final da campanha o Presidente Obama, a mulher, Michelle, e o adversário de Hillary nas primárias, Bernie Sanders.

Os democratas queriam dar ideia de uma grande unidade, mas acabaram por transmitir a impressão de que Hillary Clinton não conseguiria ganhar sozinha as eleições e tinha de chamar gente em sua ajuda. Pelo contrário, Trump apresentou-se sempre só, parecendo não ter medo de enfrentar o touro pelos cornos. Essa coragem de um lado, e a falta de coragem do outro, terá sido um empurrão decisivo.

Trump brilhou sozinho em palco – enquanto Hillary parecia entalada entre Obama, Michelle, Sanders e o próprio marido, Bill. E as eleições americanas visam eleger um Presidente – e não um conjunto de apoiantes…