Fernando Pinto do Amaral. “Este livro é uma descida por mim próprio a um abismo, ao inferno”

Em “Manual de Cardiologia”, o poeta tenta uma cirurgia para deixar uma parte de si e salvar outra dos destroços de uma experiência amorosa

Duas décadas e meia após uma estreia formidável, o percurso poético de Fernando Pinto do Amaral tem estendido silêncios, como se cada intervalo respeitasse um período de pesar ou de convalescença. A cada regresso confirma uma certa obstinação pelo sentimento. Para o bem como para o mal, esta é uma poesia que não recusa “descer mais um degrau/ ou seja degradar/ o que resta do mundo    absorver/ a pulsação da vida    celebrar/ o lúmpen    o prazer/ e o nojo de estar vivo   dizer ‘foda-se/ caralho’/ por ter de estar aqui    por estar aqui/ a mais”. Impermeável às afetações cínicas que têm regido as luas da noite que nos vai fatiando os dias, aos 56 anos, e com “Manual de Cardiologia”, FPA não veio instalar na praça a sua oficina nem quis dar provas de maturidade. Este é um ciclo doloroso, uma viagem emocional de um poeta que quase se arrepende de, “ao fim de tantos anos”, “ao fim de tantos séculos    milénios”, se ver ainda à mercê de um coração que não se esqueceu das suas funções metafóricas e, contra o bom senso, “recomeça a bater todos os dias”.

Neste livro parece abdicar do lado mais estético da poesia e lança-se num despudorado tom de confissão, a momentos quase adolescente.

Há um fundo que é quase narrativo. Mas falar de confissão, já não sei. Também há nele uma encenação.
Mudou muito a sua forma de encarar a poesia desde que começou a publicar, há três décadas?
Não mudou muito, não houve nenhum abalo que me fizesse vê-la de outro modo. Mas tem sempre evoluído num sentido em que sinto cada vez maiores dúvidas de para que serve, e se serve para alguma coisa. Por isso é que passo anos sem publicar. Neste caso publiquei porque senti que havia ali uma coerência e unidade. De certa maneira, também tinha de me libertar daqueles poemas. 

Desde o título, este livro recupera e brinca com alguns termos que terá usado durante os anos em que estudou Medicina. O que o levou a este exercício?

O livro em si mesmo tem uma carga emocional e até dramática tão acentuada que o facto de olhar para isso dessa maneira mais clínica também me permite criar alguma distância que serve de contraponto à intensidade dos poemas. Se fosse um livro com essa intensidade e não tivesse esse olhar um pouco mais frio em certos momentos, acho que se tornava… Deste modo, estabelece-se um contraste. Um olhar que pode ser cortante, frio, cirúrgico quase. Quase darwiniano, do cientista que também impõe a sua visão.

Hoje reflete sobre a sua obra, o que escreveu no passado, ou sente que se despojou disso tudo e, quando escreve, fá-lo como se nunca tivesse escrito nada antes?

Acontecem as duas coisas. Não sou daqueles autores que pensam em rasurar a sua obra. Como fez há uns anos o Joaquim Manuel Magalhães em relação à sua obra – cortou muita coisa e aquilo ficou completamente diferente. Julgo que a obra antiga está publicada, está cá fora, por isso faz parte. Nisso, penso como o Jorge de Sena, que disse: “O que está escrito está escrito para sempre.” Mas a segunda perspetiva também é verdadeira porque, quando escrevo – e neste livro aconteceu, como acontecerá outras vezes no futuro –, não estou a pensar no que já escrevi para trás nem no significado que o poema virá a ter no futuro. 

Sente-se que usou estes poemas para exorcizar uma experiência de paixão que não correu como desejava.

É um exorcismo, sim. Há essa dimensão e é importante.

E nesse sentido sente alguma transformação ou uma metamorfose através dos poemas? Sente que sai mudado no fim deste ciclo?

É difícil responder. Podia dizer que sim, há uma mudança, há momentos em que parece que sim. Mas depois há outros em que volta tudo para trás. Não é tão fácil assim. Há, no entanto, uma coisa que é verdade: é que o facto de ser escrito – e isto não é válido só para a poesia, mas para qualquer arte, para qualquer obra – representa ali uma espécie de superação ou de sublimação, como queira chamar-lhe, dessa experiência. O que significa que, depois, a experiência em si torna-se um pouco mais diferida em mim. Pouco a pouco, essa experiência que aconteceu comigo aconteceu com aquele outro, ou um tu que eu uso muito nos poemas, aquela figura que fica nos poemas e de quem me separo. Um pouco como as cobras, há uma mudança de pele. 

Sendo evidente o elemento autobiográfico, gostava de saber se há um ponto a partir do qual estes poemas intervêm e alteram a sua vida no futuro?

Vão afetar sempre. Nunca sabemos o que um poema pode vir a mudar em nós. Nem é preciso escrevê-los; mesmo enquanto leitor, houve poemas que li há dez, 20 ou 30 anos e que eventualmente terão mudado coisas na minha vida. Poemas ou textos em prosa, romances.

Perdeu a sua mãe há uns meses, uma figura muito querida do público português [a atriz Maria Eugénia Pinto do Amaral, que se celebrizou aos 17 anos como protagonista do filme “A Menina da Rádio”] que pertencia já a uma memória muito nostálgica.

É uma memória antiga, coletiva. Mas o livro não tem nada a ver com isso. Aproveito para dizer que aqueles poemas não são muito recentes. São escritos entre 2013 e 2014.

Sente-se hoje órfão? Deixou de ter teto, só tem já chão?

É, mas tenho a minha filha, que vai fazer 19 anos, e que é talvez a pessoa que não me deixa ser órfão. Ela e eu temos uma relação muito boa, embora à distância, porque ela está a estudar em Londres. Mas essa relação é o que me salva de sentir essa orfandade. 

E ela desenvolveu alguma sensibilidade para com a poesia?

Sim, sim. Está a estudar cinema e literatura em Londres. Tem imensa sensibilidade literária.
 

O seu foi o caso de um poeta com uma estreia fulgurante. Os dois primeiros livros – “Acédia” (1990) e “A Escada de Jacob” (1993) – deixaram uma impressão fortíssima, e ao mesmo tempo acompanhou isso com uma intervenção crítica importante. Mas, desde então, o Fernando parece ter-se tornado uma figura, não direi ausente, mas um pouco afastada.

Propositadamente publiquei um livro de edição mais restrita, o “Paliativos”, na Língua Morta, e vou-me interessando por outras coisas. Estou a pensar escrever noutros registos, eventualmente para teatro. Não há coisa pior do que se deixar arrumar num género, é como estar morto em vida. Julgo que nunca deixarei de escrever poesia, mas não vivo em função dessa ideia de que tenho de intervir como poeta ou crítico. Há um panorama poético que eu vou seguindo, e acho que nesse sentido, Lisboa, como o Porto também, está bastante ativa. Fazem-se bastantes leituras, iniciativas variadas. A qualidade é variável, mas sinto que a poesia, mesmo a jovem, está bastante viva, vibrante. Sinto que se está a renovar. Sinto também que, tendo em conta o meu percurso e a minha idade também, não estou preocupado em ser porta-voz nem crítico, nem em estar a analisar a poesia dessas novas gerações. Acho que têm de ser eles próprios a encontrar o seu caminho. Fiz isso naquela fase porque era o que sentia e queria fazer. Era uma afirmação do que era melhor ou pior na minha geração. Cada geração vai tendo as suas vozes. Isso faz parte da renovação da poesia. 

Para além dessa renovação, sente que nos últimos anos houve alguma alteração da paisagem, algum abalo que se registaria num sismógrafo deste tempo?

Acho que nestes últimos anos, desde 2010, não consigo identificar alguma alteração, no sentido de uma voz poética que seja a revelação deste período. Agora, o panorama geral, no sentido de publicações, leituras, a presença da poesia em determinados circuitos, aí, julgo que a evolução é positiva. Está bastante mais revitalizada.

E numa perspetiva mais global da cultura, há alguma coisa que o angustia ou entusiasma?

Julgo que há uma tendência para uma certa indiferença. Os fenómenos de massificação de gosto em termos literários e não só tornam-se cada vez mais impositivos. Quando olhamos para as maiorias, vemos que há uma adesão às Casas dos Segredos, os reality shows, e não há realmente uma cultura que se consiga opor a isso. Temos a vida cultural que podemos ter, e é normal que desejássemos ter mais. 
 

Na poesia, hoje, e a morte de Herberto Helder veio evidenciar isso, sente-se que faltam figuras tutelares, as novas gerações pouco contacto têm com poetas mais velhos, permitindo que o diálogo seja mais intenso. Apesar dessa revitalização, não sente que se perdeu essa ligação?

Sim, tem sido assim. Há uma certa orfandade nesse sentido.

Acha que as editoras institucionais ou com maior presença têm sabido acompanhar essa revitalização, ou acredita que os jovens foram deixados ao molho e com fé não se sabe em quem?

É um ciclo que é difícil quebrar. As editoras vão buscar os que lhes dão mais garantias. Por outro lado, se não arriscam, há um certo bloqueio. Seja como for, não estou demasiadamente pessimista porque existem alguns nichos que impedem a estagnação.

Talvez o diálogo mais forte que estabelece com outro poeta neste seu livro seja com Camilo Pessanha, o que surge em linha com uma afirmação de uma obra que, de uma certa marginalidade, parece ter hoje mais eco na poesia contemporânea até do que os poetas d’Orpheu?

No caso deste meu livro, isso é evidente. É um livro muito especial para mim porque representa um percurso quase de descida por mim próprio a um abismo, ao inferno – como se queira chamar, mas há algo de extremo nele. E ao mesmo tempo há uma tentativa de me retirar, e o Pessanha tem muito disso, essa atitude em que há uma grande intensidade mas que, depois, se resolve no ínfimo, umas conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos… A atenção ao ínfimo, as ninharias, o sumir-se no chão como faz um verme… A consciência de que nós também somos isso, eu tenho-a muito viva. Precisamente porque faz também o contraste com uma situação, que é a do livro, que é muito intensa e dramática, cheia de carga emocional. Isso é muito próprio do Pessanha. A ideia de que nós, por mais emoção, dramas, amores, mortes, o mais intensamente que possamos sentir a vida, somos um grãozinho de nada, pó, poeira… Esta coisa do efémero, da fugacidade, que o Pessanha tão bem compreende.