É em “Autografia” que à rede das lembranças de Mário Cesariny vem uma inscrição que leu no primeiro monumento dedicado aos homossexuais. O poeta não recorda o Homomonument, no centro de Amesterdão, por qualquer razão histórica – e este está carregado de simbolismo –, mas porque lhe ficou preso o verso que ali foi gravado. É do poeta holandês, judeu e gay Jacob Israël de Haan (1881–1924), e surge no poema “A um Jovem Pescador”: Naar Vriendschap Zulk een Mateloos Verlangen. “Um infinito desejo de amizade”, será a tradução imediata. Cesariny encontra-o na memória antes de saber ao certo as palavras. E quando o diz, prefere à ideia de infinito a de desmesura, que transporta melhor a noção de um sentimento incapaz de conter-se, um que extravasa os seus limites.
Daqui também se retirará alguma lição sobre o que de eterno se fixa na memória. Mais que a teia urdida pela aranha da História, a um nível menos consciente, de luz apagada, há um firmamento que conhece a sombra particular que emana de cada corpo, de cada palavra, o gosto muito específico que a realidade encontra em nós. E, nesse sentido, o poeta coloca os seus pressentimentos à frente daquilo que lhe diz a História. Ele sabe que “as chaves/ se desfazem quando chegam as ruínas”, mas o desejo de cruzar o limite não. Ele é um ser desmesurado.
Mais que qualquer outro poeta português do século XX, Cesariny é quem chega à poesia pelo desconsolo de tudo o mais, em estado de revolta, alguém que à vida veio de “peito muito aberto as mãos luminosas”, e se escreve não é por necessidade de testar a sua altura ou baixeza, mas simplesmente porque no fim de uma longa espera, e para lá de todo o desencanto, está ainda “o rapaz que grita sacanas/ dêem-me um pouco de amor”. E a poesia só pode ser a vertigem que alguns carregam enquanto “máquinas desejantes”. Artaud, a quem Cesariny dedicou o mais assinado dos seus poemas, escreveu “O corpo sob a pele é uma fábrica superaquecida,/ e por fora,/ o doente brilha,/ reluz,/ em todos os seus poros,/ estourados”. A poesia, só importa enquanto expressão de uma desmesura, e na melhor existe “o perigo de um grito lindíssimo”.
“Autografia”, de Miguel Gonçalves Mendes, que surgiu originalmente em 2004, regressa hoje a algumas (poucas) salas de cinema numa versão restaurada, com ligeiras modificações. Do que há a dizer sobre o melhor filme que foi dedicado neste país a um poeta, pouco posso acrescentar senão que há risco na sua graça, que a sua liberdade é leal à sua urgência. Quando ninguém ouve nem olha transformando isso num poder, quando ninguém se importa ou quer saber, ficam tantas portas por abrir, e às vezes basta uma mínima noção de como enquadrar um corpo, pôr-lhe em cima a quantidade certa de luz como o véu de uma noiva, e deixá-lo fazer o que faz – nem que seja ficar como as “crianças sentadas/ à espera do seu tempo e do seu precipício” – para alcançar algo de extraordinário.
Miguel Gonçalves Mendes teve o claríssimo pressentimento de que valia a pena andar para cima e para baixo com o poeta, dois anos e meio, e hoje, passado mais de uma década, a cada segundo o seu filme envelhece dono de uma paciência magistral. Na sua circularidade há um olhar que se mantém vivo através da fechadura de uma porta perdida. Este é um documento imensamente comovedor, um longo poema final onde a voz e o ricto do poeta coincidem. Ele que nos diz ali mais coisas tão clarificadoras: “(…) talvez porque os meus poemas, digamos, de amor, a esses nunca falta um condimento muito forte de revolta, e é talvez isso que os torna mais fortes (…). São também uma espécie de grito.”
A comparação entre “Autografia” e “As Cartas do Rei Artur”, de Cláudia Rita Oliveira, é desaconselhável. Ao debruçar-se sobre a figura de Artur Cruzeiro Seixas e as suas memórias, tantas vezes num diálogo com o amigo desaparecido, os episódios e as lembranças da amizade candente dos dois, desde os tempos da adolescência e até à velhice, esse carregar nos braços um amor fantasma, contribui para que este documentário exista melhor na sua relação com o outro. Até porque uma das cenas mais comovedoras nele é o momento em que vemos Cruzeiro Seixas assistir a “Autografia”. Há cenas dos dois que se cruzam e outras que se sobrepõem à semelhança desse pequeno lugar comum que é o mais afectivo: o de uma mão sobre a outra (Rui Nunes).
Foi assim providencial a decisão de estrear um e recuperar o outro. Há uma diferença de atitudes na própria forma como os dois se deixaram filmar, com Cruzeiro Seixas a ‘tolerar’ uma espécie de intrusão benigna, ao passo que Cesariny embarcou mesmo, e não é só o sujeito de um documentário mas o actor da sua própria representação. Enquanto um assume um lugar exterior em relação à obra, o outro encarna-a. Existe em Cesariny uma gravidade em que cada gesto ou palavra parecem atender a relações astronómicas. Por seu lado, Cruzeiro Seixas é uma figura menos romântica, e revela até uma certa displicência face ao seu fabuloso instinto artístico.
Num a sedução não tem descanso, cada momento parece chave, prende na corda e deixa secar outra imagem, numa câmara escura, com o processo de revelação a exigir tempo, porque “os objectos vivem às escuras/ numa perpétua aurora surrealista/ com a qual não podemos contactar/ senão como amantes/ de olhos fechados/ e lâmpadas nos dedos e na boca”. Já o outro parece um personagem à margem da sua própria história. Obrigado a enfrentar-se, a rever o que ficou, o que ficará.
Poucas vezes se terá sentido tão claramente a crueza que é estar disponível para regressar, passear pelo museu das coisas de si mesmo e de outros para si. Textos, fotos, desenhos, pinturas, cartas de que tempo? Um homem forçado a ser o narrador periférico da sua própria vida, empurrado para a posição de quem olha de fora para o interior de si.
“Da minha vida nada vai ficar definitivo, clarificado. Não vivi, mas deixarei documentos desse não viver”, comenta a certa altura Cruzeiro Seixas.
Em entrevista ao “Observador”, Cláudia Rita Oliveira, explicou que a sua primeira longa-metragem “fala da inevitabilidade do desencontro, o que tem a ver com a forma como o Cruzeiro se relaciona com o mundo e especialmente como se relacionou com o Cesariny, que até era para não estar no filme. Depois, tornou-se inevitável que estivesse.” Em alguma medida, este documentário é fragilizado pela sua incapacidade de revelar luz própria, tornando-se um satélite que orbita em torno não apenas de “Autografia”, mas da figura de Cesariny.
Há um pudor difícil de superar nas palavras de Cruzeiro Seixas, e há uma humildade que é também uma ferida. Nos melhores momentos do documentário, vemos este homem de noventa e quantos anos, parecer distraído, perdido ou aborrecido. O mundo continua mas ele já saiu nalguma estação. Há nele toda a mágoa de já não ter porque esperar. “Eu já cheguei a um estado, que é o estado que me é possível, não é nenhum estado de transcendência, e que realmente já não é a saída que me interessa. Interessa-me o labirinto em si.” Mas então o desafio era reencontrá-lo. E neste ponto, fica a sensação de que se vai mais longe detendo o olharnos desenhos e pinturas de Cruzeiro Seixas, na forma como neles o desejo dá um desmedido passo em frente, para sair fora deste mundo e, assim, nos mergulhar no sonho.