Nome marcante da narrativa portuguesa contemporânea, autora de uma obra de qualidade admirável, repartida pelo conto, a novela, o romance, a crónica, e em boa parte situada no espaço geográfico do Extremo-Oriente, Maria Ondina Braga (13 Janeiro de 1932 – 14 de Março de 2003) é hoje um nome desaparecido na voragem do esquecimento.
Foi uma escritora de muitas declinações – Europas, Áfricas, Chinas. Dela se poderia dizer que foi um Fernão Mendes Pinto dos tempos modernos, salvaguardando, entre muitos outros aspectos, a fé que podemos fazer no relato dos seus périplos cosmopolitas, sensível aos signos do enigmático, o programa de «fazer fortuna» (sempre soube viver com pouco) e a tutela de valores que lhe desenham o perfil de mulher reservada, quase secreta, e solitária. «A escrita é a única coisa que tenho na vida. Sozinha com a escrita. Digamos que é uma fatalidade…», afirmou numa entrevista ao Diário de Notícias.
À semelhança da Peregrinação, a obra que construiu, dispensando embora o fio romanesco, trocado por uma discreta estrutura aglutinadora, possui a marca de uma intensa aventura humana que, ao penetrar no existir colectivo, recusa uma perspectivação de limitado cunho pessoal,
Com livros como A China Fica ao Lado ou Nocturno em Macau, Maria Ondina Braga põe fim à longa viagem de descoberta da China começada por Fernão Mendes Pinto. Também nela se cruzam de forma reflectida, vivencial e durativa, liberta de preconceitos e juízos precipitados, os modos civilizacionais, as heranças culturais, os hábitos discursivos e as experiências concretas do quotidiano do Ocidente e do Oriente.
Maria Ondina (assim começa por assinar os seus livros) nasce na Cidade dos Arcebispos e das «Nossas Senhoras de todos os nomes» em Janeiro, numa sexta-feira 13. A má-estrela cedo se acendeu, ensombrando-lhe a infância de constante convívio com a morte: primeiro o pai, contava apenas 10 anos, pouco depois a mãe, logo a seguir o tio, «morria toda a gente da família». É pois situada no lugar de uma profunda solidão que falará de si e do mundo, valorizando a sua densidade simbólica, o seu lado vendado.
Numa «braga branca, violácea, de igrejas, dobre a sinos, lentidão e adormecimento» começa por publicar, muito jovem ainda, dois livros de poemas, O Meu Sentir (1949) e Almas e Rimas (1952). Prossegue os estudos em Inglaterra, onde completa o curso da Royal Society of Arts, e depois em Paris, com o curso da Alliance Française. E é então que verdadeiramente começam as andanças da professora-escritora que hão-de projectar-se no espaço e no tempo da sua obra, nos movimentos diegéticos, a replicarem, sob a sua prosa serena, dinâmicas tumultuosas; mas também desse fundo viajante provirá muito da sua depurada energia verbo-simbólica.
A má-sorte não deixaria de a perseguir: «eu, onde quer que chegue, aí o conflito e a falência. Que azar». Assim em Angola, onde em 1961 estoira a guerra colonial. Assim em Goa: em finais desse mesmo ano, a ocupação indiana impõe-lhe o salto para Macau, o último pilar do ciclo colonial português. Por aqui se demora quatro anos, tempo para escrever o primeiro livro de contos, A China Fica ao Lado (1968) e Estátua de Sal (1969), uma autobiografia romanceada.
Movida pelo desejo de se encontrar consigo, continua viagem: Saigão, Singapura, Bombaim, Tailândia, Hong-Kong. O apelo da partida é nela um ímpeto vital: «Partir é bom, mas, pensar em partir, melhor ainda. Quanto a mim, acho que tenho sempre chegado. Partir é esperança. Chegar, desencanto». A sua ficção, aberta ao exótico e à alteridade, centrada num quotidiano feminino, solitário e atormentado, onde o amor é apenas conjectura e desencontro, é a projecção literária de um universo pessoalíssimo, marcado por uma normalidade ameaçada, por vezes prestes a mergulhar no abismo da morte.
Se transitarmos para a esfera editorial, a sorte não se revelou menos negra. O seu primeiro livro, Eu Vim Para Ver a Terra (1965) – um volume de crónicas inicialmente publicadas na página literária do Diário de Notícias – veio a público estropiado e crivado de gralhas, convertendo o gosto em «grande desgosto». Seria o primeiro de uma série, como declara numa entrevista magoada à revista Ler (Outubro de 1990): «A minha sorte tem sido bem fraca: «Nunca tive um editor que se empenhasse na promoção da minha obra».
Má sorte, também, foi ter publicado num país que ainda não encontrou oportunidade para lhe reeditar a obra, que quando lhe recorda os livros é quase sempre e apenas para ilustrar a tradição do imaginário asiático na literatura portuguesa (Wenceslau de Moraes, Camilo Pessanha, Ruy Cinatti), ou para lhe colar a etiqueta redutora da escrita feminina.
Depois de tantas errâncias, Maria Ondina Braga viverá, a partir de 1964, a sua vida de modéstia em Lisboa, onde se dedica à tradução e ao trabalho da sua obra, que então começa a publicar. Em 1970, surge Amor e Morte, uma colectânea de contos, refundidos e aumentados no volume O Homem da Ilha e Outros Contos (1982), que lhe valeu o Prémio Ricardo Malheiros. Prossegue com Os Rostos de Jano (novelas, 1973), A Revolta das Palavras (contos, 1975), A Personagem (romance, 1978), obra de verdadeira aliança entre ficção e diário intimo que se reúnem para se (con)fundirem. Surgido em 1991, o romance Nocturno em Macau, distinguido com o Prémio Eça de Queirós, recolhe ainda as experiências do Oriente.
Maria Ondina Braga fez do exercício da escrita, subtil e penetrante, povoada pelos lugares que foram os das suas viagens, a mesa da sua solidão. Como companheiras teve Maria Browne, Lou Salomé, Jane Austene, Irene Lisboa, Georg Sand, Virgínia Woolf, Rosalía de Castro, Cecília Meirelles, Georg Eliot, Florbela Espanca entre muitas outras figuras femininas que biografou e se encontram reunidas nos dois volumes de Mulheres Escritoras (1980).
A autora de Angústia em Pequim regressará a Braga para morrer em solidão.