Para lembrar que o silêncio não aceita substitutos, não tem emissários e que o envergonham as glosas que lhe tecem; para deixar claro também que falar dele, dizendo a falta que faz, ainda é mastigar ruído como toda a gente faz, Adélia Prado honrou-o da única maneira possível: pela ausência. Não foi só o silêncio que lhe surgiu como único remédio na sequência de uma crise depressiva, e que lhe “emudeceu a pena”, a meio da década de 1990, foi a noção que desde então se lhe impôs da “aridez como uma experiência necessária” na vida e na arte. O silêncio mostrou-se da maior sinceridade, um apelo cada vez mais forte, passando a pautar a sua manifestação pública no meio da barulheira da actualidade e de um ciclo vertiginoso em que os desastres se sucedem. Numa entrevista recente lembrou a capa do “Charlie Hebdo”: “O que quiseram dizer com um corpo furado de balas que vertia champagne? Não é voltando imediatamente a restaurantes e cafés e dizendo ‘não temos medo’ que responderemos ao fogo. Agora somos chamados a um recolhimento, a um silêncio que nos permita ouvir atentamente, encontrar e admitir a nossa culpa.”
Voltemos um pouco atrás, para que se juntem a nós os leitores que não fazem ideia de quem seja Adélia Prado. Foi no dia 9 de Outubro de 1975 que o Brasil primeiro viu impresso este nome. Carlos Drummond de Andrade serviu-se da sua crónica no “Jornal do Brasil” para celebrar a descoberta de uma poeta do seu estado natal, Minas Gerais, e isto em termos que não davam a menor margem para discussão. Quando a literatura ainda causava ansiedades, o Brasil pôs-se a roer as unhas: vinha aí uma novata mas que caía com estrondo naquele chão todo, porque estava madura, a um mês de fazer 40 anos, casada e com cinco filhos, professora numa pequena cidade do interior, com o sugestivo nome de Divinopólis.
“Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo”, escreveu Drummond, e, meses depois, o primeiro livro dela – “Bagagem” – contou no lançamento com figurões como Antônio Houaiss, Raquel Jardim, Clarice Lispector, Juscelino Kubitschek, Affonso Romano de Sant’Anna, Nélida Piñon e o próprio Drummond. No que toca a baptismos literários, Adélia teve a sua cerimónia no céu, com os anjos todos.
Tinha escrito os primeiros versos após a morte da mãe, em 1950, e depois de se ter formado em Filosofia, em 1973, um dia enviou um conjunto de originais a Sant’Anna, que era crítico literário, e este logo os remeteu a Drummond, que por sua vez os enviou ao editor da Imago, Pedro Paulo de Sena, e então já ia a ordem de que os publicasse porque os poemas eram nada menos do que “fenomenais”. Anos mais tarde, Sant’Anna fez questão de deixar uma coisa muito clara em relação ao aparecimento desta poeta: “Não fui eu quem descobriu Adélia Prado, nem Drummond, nem Pedro Paulo de Sena Madureira. Ela se revelou, se desvelou, teve coragem de ir à raiz do ser para desencravar sua linguagem. Apenas facilitámos a sua passagem.”
O livro foi o sucesso que tinha de ser. E dois anos depois, em 1978, Adélia lançou “O Coração Disparado”, que conquistou o prémio Jabuti. A poeta pôde então deixar as aulas e dedicar-se inteiramente à escrita. Contudo, dessa experiência ficou-lhe a noção de como, na educação, as bases são o que faz toda a diferença. E quando lhe perguntam o que explica que a poesia seja o patinho feio entre os géneros literários, ela explica que a culpa é “da nossa “pátria educadora” e de longo tempo, onde a literatura é tratada como descartável. Faz parte do baixo clero das escolas, onde mal vicejam educação artística, religiosa e até educação física. Não merecem participar música, teatro, dança, nada que nos faça descobrir que somos humanos, necessitamos de beleza e transcendência, que precisamos de ar. Antes de nos preocuparmos com a multiplicação de feiras literárias e bienais, urge cuidarmos do feijão com arroz do estudo básico, que só acontece no primário bem feito. Ler, escrever, interpretar.”
A Portugal a poeta chegou só no início do século XXI, pela mão de André Jorge, editor dos Livros Cotovia, que morreu no ano passado. Foram editados o livro de estreia, e uma antologia – “Com licença poética” – da responsabilidade de Abel Barros Baptista. Quem descobriu a poeta então não ficou necessariamente esmagado pela quantidade absurda de poemas que levam na língua uma hóstia, não deixando mesmo assim de pronunciar bem as sílabas de um quotidiano feito do espanto de estar vivo, do arrojo de umas observações exemplaríssimas e modestas, concretas e verificáveis, mas com um ímpeto que trança da realidade os cabelos mais armados e crespos como se enlanguescidos numa solução de fábula.
Depois de ter completado 80 anos no final de 2015, com os mesmos anos de gaveta quanto aqueles que somou enquanto autora publicada, a Assírio & Alvim fechou 2016 com uma nova antologia de Adélia, organizada pelo padre-poeta José Tolentino Mendonça e por Miguel Cabedo e Vasconcelos, padre também.
Se o foco religioso é indissociável da poesia de Adélia, esta antologia saúda e acirra essa componente. Isto começa com o título, “Tudo Que Existe Louvará”, que era já o título de um poema da autora (reproduzido na contracapa desta edição) e onde a devoção é de tal ordem que, no âmbito litúrgico, sufoca o entorno lírico e inclina o plano existencial de uma forma que arrisca perder os leitores que vieram pela poesia. De resto, há outros exemplos nesta obra que captam de forma bem mais fulgurante a “minúcia fascinada” que é determinante nesta experiência poética, e que subtilmente consegue flanquear-nos os sentidos e seduzir-los para um êxtase mais chão das coisas do mundo, para essa sensação religiosa que deixa Deus subentendido, como se fora uma luz que guia, ao invés de uma luz encantada com o espectáculo da sua refracção.
Há assim uma experiência de choque que aguarda aqueles que tenham reservas em ver a poesia entrar no campo da missionação, levar às costas a dogmática cristã, ou verem os poemas sempre saindo ou entrando na igreja. E isto é mais esgotante quanto nunca deixam de impressionar-nos os versos que arejam um pouco a sacristia, esses que em vez de louvar são a pura manifestação de um estado de graça. As passagens mais beatas, as que tentam elevar, são as que tornam mais difícil reprimir aquela infância castigada nas cerimónias familiares, mesmo se tentamos portar-nos bem à mesa, não gritar um palavrão porco, nem puxar a toalha, há um momento em que a censura nos ultrapassa, e para não sermos mais violentos, pomo-nos a citar Alberto Caeiro: “Pensar em Deus é desobedecer a Deus,/ Porque Deus quis que o não conhecêssemos,/ Por isso se nos não mostrou…/ Sejamos simples e calmos,/ Como os regatos e as árvores”…
Se é certo que um dos problemas graves no mundo é o quanto tem falhado a máquina da culpa, sendo os na mó de baixo que mais aturam ainda essa mão pesada entre a festa e o puxão, há um momento em que o leitor tende a sentir-se um vampiro, qualquer criatura raivosa e para lá de excomungada, como se a pele descamasse de ter tanto crucifixo e água benta salpicada na sua direcção.
Felizmente, há depois outros poemas na obra de Adélia em que a poeta sabe caber dentro das evidências e não obriga a criação a espelhar o rosto do seu criador. Porque, afinal, a conversa com Deus sabe a fiado, é a metafísica por excelência. Ora a própria poeta se vai por aí, em “Clareira” diz-nos: “Eu gosto de metafísica, só pra depois/ pegar meu bastidor e bordar ponto de cruz,/ falar as falas certas: a de Lurdes casou,/ a das Dores se forma, a vaca fez, aconteceu,/ as santas missões vêm aí, vigiai e orai/ que a vida é breve./ Agora que o destino do mundo pende do meu palpite,/ quero um casal de compadres, molécula de sanidade,/ pra eu sobreviver.”
E há horas em que Adélia tem essa simplicidade de quem vê manobrar o destino, a forma como afia a faca e nos surpreende em coisas tão habituais como uma “Janela”, que afinal, da boca para o olho, entre o som que saliva, a visão e o imaginário, sai debaixo da saia da poesia e nos belisca para a realidade, nos põe a olhar esse campo de intensidades fenomenais: “Janela, palavra linda./ Janela é o bater das asas da borboleta amarela./ Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,/ janela jeca, de azul./ Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,/ meu pé esbarra no chão./ Janela sobre o mundo aberta, por onde vi/ o casamento da Anita esperando neném, a mãe/ do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi/ meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:/ minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis./ Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,/ claraboia na minha alma,/ olho no meu coração.”
E aqui está o problema desta antologia que, com todos os sacramentos, não arranjou espaço para poemas como estes dois e outros de que os leitores de poesia talvez continuem a gostar mais.
Adélia Prado. Entre o sagrado coração e o coração do olhar
Chega a Portugal uma nova antologia que vinca a componente religiosa da grande poeta brasileira que injustamente chegou a ser considerada mais “uma catequista do que uma escritora”