O título é subtil, mas quase provocador. “Quinta-feira e outros dias”, o livro de memórias de Aníbal Cavaco Silva na presidência da República, vai para as livrarias em meados deste mês de fevereiro. O lançamento, já noticiava o i de ontem, será no dia 16, no Centro Cultural de Belém.
Numa breve nota, o antigo chefe de Estado clarifica que manteve até agora reservada “parte importante” da sua acção como Presidente da República com o objectivo de “defender o superior interesse nacional”, tendo agora chegado a altura de “completar a prestação de contas aos portugueses”. Um “testemunho de componentes relevantes da minha magistratura que são, em larga medida, desconhecidos dos cidadãos”, diz Cavaco Silva.
O título trata-se de uma referência aos encontros semanais entre o Presidente da República e o primeiro-ministro português, tradicionalmente realizados à quinta-feira de cada semana.
E, ao que o i apurou, não foi por acaso. “Quando se olha para a presidência do professor Cavaco Silva, creio que o que sobressai é a sua leitura dos poderes presidenciais”, aponta um veterano parlamentar do Partido Social Democrata. “Durante os seus dez anos no Palácio de Belém, essa passou muito pela forma como o Presidente se relaciona com o primeiro-ministro; até porque ele próprio já tinha estado do outro lado da mesa de despacho”, prossegue a mesma fonte, que se reservou ao anonimato. “Ele sabia que quem tem a verdadeira capacidade de mudar e decidir as coisas é o primeiro-ministro. E aí a relação não era do ponto de vista público, era sobretudo fazer vingar o seu ponto de vista”.
Um jurista que também acompanhou de perto a década de Cavaco Silva na chefia de Estado aponta, por outro lado, que “a ser acusado de alguma coisa, será de cumprir de forma demasiado estrita a Constituição”. “Foi uma linha, se quisermos, diferente da de Mário Soares, que entende que o Presidente deve comunicar constantemente com ‘o povo’ e que exerce a sua influência pela força que lhe advém directamente do povo, que deve servir de contrapoder, quer ao governo, quer ao seu partido de origem”, conclui a fonte ouvida pelo i.
Um membro da Casa Civil de Cavaco recorda até que “o Presidente recusava que determinadas coisas que o podiam beneficar fossem reveladas por acreditar que a publicidade era inversamente proporcional à eficácia”. “Quanto menos discreto menos eficaz seria a ação do Presidente, foi nessa base que o vimos agir e tornou-se evidente quando abdicou da popularidade em prol do resultado final, nomeadamente quando segurou o governo de Passos contra a opinião publicada”.
Sobre a relativa ausência da vida pública desde que o seu sucessor, Marcelo Rebelo de Sousa, lhe sucedeu em Belém, a mesma fonte ouvida pelo i diz que “o silêncio deve manter-se, tirando excepções ocasionais”.
Recentemente, o antigo Presidente escreveu uma nota à imprensa sobre a importância da convergência europeia, no 25º aniversário da assinatura do Tratado de Maastricht, do qual foi protagonista, assim como no aniversário das primeiras licenças para canais de televisão privados.
De resto, Aníbal Cavaco Silva surge em eventos académicos, convites que não abdica de aceitar sendo ele mesmo um professor universitário aposentado. As intervenções são, de facto, esporádicas: os parabéns a Guterres (“É com particular orgulho que felicito o eng.º António Guterres pela sua eleição para o cargo de Secretário-Geral das Nações Unidas”) ou a despedida de Mário Soares, com quem a convivência nem sempre foi fácil noutros tempos, escrevendo que “discordâncias do passado devem ser postas de lado” pois era “a hora da evocação de um homem com genuíno entusiasmo pela causa pública e um compromisso com a cidadania”.
O novo livro, conclui a mesmas fonte, “corre na tradição de prestar contas depois de prestar um serviço público”. “Foi assim quando saiu do Ministério das Finanças, quando saiu de São Bento, etc.”.
Curioso é o facto de, antes sequer de rumar a Belém, o também ex-primeiro ministro ter descartado a publicação do seu terceiro livro de memórias, tendo já escrito dois volumes de “Autobiografia política”.
“Acha possível daqui a dez anos escrever o terceiro volume?”, perguntou-lhe Herman José, em entrevista. “Nessa altura já não terei paciência para jogar mão de toda a papelada que seria necessária reler, todas as casseste que seriam necessárias visualizar, todos os apontamentos que seriam necessários comsultar”, respondeu um sereno Cavaco Silva.
Pelos vistos, a paciência continua cá. E chegou para 592 páginas.