Por razões variadas nem sempre facilmente explicáveis, escritores hoje tidos como grandes, alguns deles alçados à condição de clássicos, passaram pela vida como ilustres desconhecidos; dir-se-ia que a celebridade lhes foi inteiramente póstuma. Outros, acolhidos pela melhor critica mas recebidos com fria indiferença pelo público, tiveram de sujeitar-se a uma posteridade vagarosa. Outros ainda, pelo contrário, tiveram impacto imediato, conheceram raro acolhimento público, mas a morte veio progressivamente apeá-los de um cume em que parecia terem-se fixado.
É o caso de Fernando Namora, autor de mais de 30 títulos publicados, entre romances, contos, crónicas e poesia, nome saliente do trajecto neo-realista cuja obra constituiu, ao longo das primeiras décadas da segunda metade do século XX, um fenómeno de vendas e traduções, da China aos Estados Unidos.
Ainda a marca Pessoa, longe de sonhar com o catálogo da literatura de caneca ou de t-shirt, não circulava no estrangeiro, e já o autor de Retalhos da Vida de um Médico corria mundo em traduções para as principais línguas europeias, mas também em África e nas Américas, onde conquistou público bastante para esgotar edições.
Poucas décadas bastaram para que o escritor-médico passasse de «grande génio da literatura portuguesa» (assim o apresentavam artigos e recensões, badanas e contracapas) a escritor atirado para o lote dos autores conjunturais, exumados apenas ao sabor das conveniências ou das exigências da socio-literatura, como se, no caso, a realidade profunda do Portugal fascista, os itinerários do país salazarento, a indagação ficcional sobre a nossa história e os desafios que Namora lhe lança não pudessem interessar novas gerações de leitores.
A existência literária de Namora passou, em boa verdade, a confinar-se aos territórios da especialidade. E até há bem pouco tempo, quem quer que o buscasse numa livraria perdia a viagem. Nem sinal daquele que abriu os livros ao inventário romanesco dos trabalhos e dos dias sofridos dos homens e das mulheres sem juventude e sem descanso, aos quais deu generosamente corpo e voz, relevo, dinâmica esperançada – vida. E um toque de efectiva grandeza, pois sempre lhe doeu a carga de submissão das existências mais humildes. Do autor de Resposta a Matilde (1980), e para os mais persistentes, apenas uns ‘restos de colecção’, jazendo num ou outro armazém.
A Caminho, que este ano publicará ainda o romance Domingo à Tarde e até 2019, data do centenário do nascimento de Fernando Namora, pretende dar continuidade à republicação das obras do autor, veio pôr fim a este definhamento editorial. Depois das duas séries narrativas de Retalhos da Vida de Um Médico, concentradas num único volume, entretanto esgotado e já em processo de reimpressão, acaba de sair O Rio Triste com um prefácio de David Mourão-Ferreira que o apresenta como «o mais polifonicamente ambicioso e o mais arrebatadoramente conseguido de quantos romances Fernando Namora escreveu».
Último romance escrito por Namora, aquele que apesar de tudo era indispensável escrever, corre muito fora dos trilhos do neo-realismo e longe daquele optimismo que encontramos em zonas anteriores da sua obra. Originalmente publicado em 1982, O Rio Triste é um romance para atravessar de galochas, daquelas bem altas, pois o que se pede ao leitor – a quem se recusa o papel de mero espectador de ficção – é «o mergulho na vida até ao pescoço».
Romance de primeiríssima água, traz no título a atmosfera em que se move: amarga, desalentada, dominada por uma sensação de fim que foi também a do autor quando acabou de o escrever, como se o vazio o viesse habitar, colocando-o perante o limite dos signos que lhe couberam em sorte. «A partir dele entrei num período de melancolia, de depressão, de vazio. Vazio interior… Sinto-me no vácuo, com uma enorme sensação de fim, como se tudo aquilo que eu tivesse de dizer como escritor estivesse dito», afirmou numa entrevista dada a Fernando Dacosta, publicada no JL.
A narrativa, feita do cruzamento de várias vozes e da interacção de registos e de discursos de diversa proveniência (do jornalismo, da publicidade), roda em torno do desaparecimento de Rodrigo dos Santos Abrantes, um homem de rotina cinzenta, casa-emprego-casa, que nunca chegaremos a conhecer, e que é tanto o eixo de um mistério onde nenhuma chave cabe, como a questionação da existência, esse rio que não pára de correr, e do seu sentido.
Assim como um rio recebe mananciais de ambas as margens, também este romance de alcance duplamente colectivo (no plano familiar e no plano nacional) se alimenta dos dois lados, antes e depois dessa fronteira histórica que o ano de 1974 configura. Quase todos os temas da história portuguesa das últimas décadas encontram lugar neste Rio discursivamente fluente, num exercício de aparente facilidade verbal que esconde a cautelosa manipulação da realidade: a guerra colonial, a clandestinidade e a resistência, a chaga da emigração, o jornalismo a contas com a censura, as greves reprimidas, os tribunais plenários, mas também o amor, a morte e a própria literatura – tudo atado numa coesão temática de longo alcance.
Romance total o quis Namora, livro-soma de todos os livros no qual se condensa toda a sua experiência romanesca, todo o talento literário que aqui se exibe na sua plenitude: «o romance tem de ser uma soma, um inventário, um suicídio torrencial, apocalíptico. Uma enxurrada de vida a despenhar-se num abismo. O romance é um acto derradeiro, um testamento.»
A este rio de tom dorido banhado de atmosferas contidamente trágicas, vêm desaguar, a um tempo, a tão portuguesa experiência de ir ao fundo e as angústias da própria criação literária. E por isso se faz, se desfaz e refaz, se adia e se estrutura diante dos nossos olhos.