A discussão durou ontem várias horas na reunião da Comissão de Inquérito à CGD e promete não se ter esgotado completamente. PSD e CDS insistem na ideia de que podem pedir trocas de correspondência e voltar a chamar Centeno e Domingues para os confrontar com as informações que entretanto vieram a público. PS, BE e PCP consideram que isso está fora do objeto da Comissão.
É difícil perceber quem tem razão, mas é possível olhar para os argumentos de um lado e de outro.
A recapitalização da CGD está dentro do objeto da Comissão de Inquérito à CGD?
Não. Começou por constar do requerimento inicial feito por PSD e CDS, mas Ferro Rodrigues disse ter dúvidas sobre se uma comissão de inquérito poderia analisar uma operação que ainda nem se tinha iniciado e pediu um parecer à procuradora da Procuradoria-Geral da República que é a auditora jurídica do Parlamento.
Sociais-democratas e centristas optaram por retirar a recapitalização da CGD do requerimento de constituição da Comissão e a procuradora emitiu um parecer dando força à ideia de que um processo que ainda não estava iniciado não deveria ser parte do objeto do inquérito sob pena de pôr em causa "o princípio de separação de poderes, sobre a margem própria de iniciativa, deliberação e ação de que dispunham o Governo e as instituições europeias no âmbito do procedimento decisório então ainda em curso".
Em janeiro, PSD e CDS voltaram a apresentar um requerimento para alargar o objeto da Comissão e nele incluir o processo de recapitalização, argumentando ter havido entretanto "desenvolvimentos muito relevantes" e defendendo que esse processo estava já "finalizado".
Ferro Rodrigues voltou a ter dúvidas e pediu novo parecer à auditora jurídica, que concluiu que o objeto da Comissão não podia ser alterado.
Por que é que não se pode alterar o objeto da Comissão de Inquérito?
O parecer de 4 de janeiro da auditora jurídica diz que as comissões de inquérito, "pela sua natureza eventual (extraordinária), orientada para a investigação de casos concretos e determinados, durando apenas pelo tempo necessário ao desempenho dessa tarefa e dentro dos limites máximos temporais fixados (…)" devem ter um objeto determinado à partido que não deve ser alterado, porque essa é a garantia de que "o instituto é unicamente usado para fins constitucionalmente legítimos".
"Daí que não se afigure compatível quer com a natureza jurídica das comissões parlamentares de inquérito quer com a exigência de determinibilidade do objeto os inquéritos parlamentares um alargamento da competência material destes órgãos a factos não abrangidos no objeto originário do inquérito parlamentar ainda que conexos", escreve aa procuradora da República.
Isso impede perguntas e acesso a informação sobre o acordo entre Mário Centeno e António Domingues?
Para a esquerda, sim. Foi esse o fundamento ontem invocado para PS, BE e PCP chumbarem todos os requerimentos de PSD e CDS que iam nesse sentido.
Para a direita, não. O CDS invocou um artigo do regime das comissões parlamentares que diz que os requerimentos potestativos de deputados devem ser sempre atendidos, não podendo sequer ser votados pelo plenário da comissão. Um argumento que levou João Almeida a considerar "ilegal" a votação de ontem.
O PSD quis pedir um novo parecer à auditora jurídica para esclarecer este ponto, mas a proposta de Hugo Soares foi travada pela maioria de esquerda.
Por que é que a Comissão não pode usar a correspondência fornecida por António Domingues?
A esquerda impediu essa utilização, alegando que se as 176 páginas fornecidas por Domingues versavam sobre a recapitalização da Caixa e que esse assunto tinha ficado fora do objeto da Comissão.
Em relação a e-mails e sms, Miguel Tiago do PCP lembrou mesmo tratarem-se de comunicações privadas, pondo em questão a constitucionalidade do seu uso.
Recorde-se que há um acórdão do Tribunal da Relação – ainda em recurso – que diz que a Comissão de Inquérito à CGD deve ter a acesso a toda a documentação que pediu à Caixa, à CMVM e ao Banco de Portugal, mas deixa de fora o acesso à correspondência.
A direita não entende, porém, estes argumentos, porque a Comissão só recebeu os documentos de António Domingues na sequência de um requerimento que os pediu e que não foi travado pela maioria de esquerda.
Isso significa que a Comissão não pode sequer fazer perguntas sobre a recapitalização da Caixa?
Na verdade, já as fez durante as audições a Mário Centeno e António Domingues. Mas esse é o argumento da esquerda para que estes dois protagonistas não voltem à Comissão como pretendiam PSD e CDS.
Neste ponto, o parecer da auditora jurídica é dúbio. Maria Isabel Fernandes da Costa admite que "sempre se dirá que o conhecimento do Plano de Reestruturação e Recapitalização da Caixa Geral de Depósitos não é assunto que possa ser considerado estranho ao objeto da Comissão dada a relativa abrangência do objeto preliminar que tem por incumbência realizar", motivo suficiente para entender que "tal Comissão de Inquérito não está à partida impedida de vir a obter das entidades competentes todas as informações necessárias à realização do inquérito ainda que, para tanto, se revele necessário acionar os poderes próprios das autoridades judiciais de que está investida".
Como se pode resolver o impasse criado na Comissão?
A resposta é dada por uma sugestão que está no último parecer da auditora jurídica da Assembleia da República. E pode passar por PSD e CDS forçarem uma nova comissão de inquérito sobre o processo de recapitalização.
É a própria auditora jurídica a considerar que o facto de ter excluído agora a possibilidade de incluir esse tema no objeto da presente Comissão "não invalida" que possa ser criada "uma nova comissão parlamentar de inquérito potestativa que tenha por finalidade específica a 'avaliação' do Plano de Reestruturação e de Recapitalização da Caixa Geral de Depósitos". Resta saber quando será isso possível, uma vez que terá de ser concluído que o processo foi finalizado e pode por isso ser alvo de um inquérito.