Na sua 18.ª edição, o Correntes D'Escritas celebrou a sua "maioridade", com alguns dos intervenientes que se tornaram já 'loiça da casa' a ressalvarem insistentemente que maior já ele era há muito, tendo sido pioneiro entre todos os festivais literários que hoje pontuam, de norte a sul, o mapa e o calendário.
A cerimónia de abertura contou com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que consagrou este festival como “o principal” evento no género, tendo tido o mérito de fazer da "Póvoa de Varzim uma porta de entrada da literatura mundial no nosso país". Aqui um parêntesis chato, o melhor mesmo é o leitor ignorá-lo e passar à frente: (À entrada do Casino, uma manifestação de duas dezenas de trabalhadores deste exigindo a actualização dos salários, congelados desde 2009, caiu como uma mancha na camisa, logo escondida pela gravata. Do cimo das escadas, olhando para baixo, escritores e editores ou se alhearam ou riram como se a manifestação viesse acrescentar mais colorido a um dia de festa. A Sala D’Ouro do Casino ficou com a lotação esgotada, e durante as intervenções, em que todos se congratulavam com um evento que, segundo o vereador da cultura da Póvoa, Luís Diamantino, colocou a cidade “no mapa universal da literatura”, o assunto nem mencionado foi.)
O festival, que deve muito do seu encanto ao lado provinciano, gozando o encosto ao mar, numa cidade balneário que tende a fantasmagorizar-se na época baixa, conta nesta edição com cerca de 80 escritores (50 deles repetentes) de 13 nacionalidades, e que irão passar pelas várias mesas, debates, apresentações de livros e outras iniciativas. O evento volta uma vez mais a buscar a representação de toda a lusofonia, só faltando nesta edição algum escritor vindo de Timor. Marcelo saudou este aspecto como a vertente ecuménica do festival. "Sou testemunha da abrangência ideológica, temática e estilística" do Correntes D'Escritas, disse, destacando ainda o papel essencial da articulação com as escolas, por onde os escritores vão passando nestes dias. O Presidente referiu-se também a Luís Filipe Castro Mendes, numa rábula em que notou que este chegava ali na qualidade do ortónimo poeta que estava a concurso para o prémio Casino da Póvoa, e com o seu heterónimo ministro da Cultura.
Tendo entretanto sido anunciada a atribuição do prémio ao poeta Armando Silva Carvalho, pelo livro "A Sombra do Mar" (Assírio & Alvim, 2016), Marcelo adiantou que Castro Mendes podia consolar-se sabendo que o seu ortónimo "tinha já ganhado o coração e admiração dos portugueses" pela sua obra poética. A outra menção do chefe de Estado foi para Eugénio Lisboa, ensaísta de 86 anos homenageado nesta edição do festival – sendo-lhe dedicado um dossier na revista Correntes D’Escritas –, com quem tem em comum a terra natal, Lourenço Marques. Referindo-se ao escritor como seu "mestre", Marcelo lembrou como este foi não só uma figura cultíssima como irreverentíssima, superlativos que mantém em sentido mesmo com a sua avançada idade. O presidente deixou ainda uma nota pessoal de afecto, agradecendo o facto de nos volumes das memórias que o ensaísta tem publicado ("Acta Est Fabula", na editora Opera Omnia), recordar a sua mãe, Maria Fernandes Duarte, e lembrou como foi pelos olhos da sua mãe que primeiro aprendeu a admirar Eugénio Lisboa. Recordou os vários encontros numa livraria na capital moçambicana, e confessou que tinha o hábito de vigiar os títulos que o ensaísta comprava para conhecer "as escolhas do mestre". Na sua intervenção, Lisboa foi sucinto, admitindo que é sempre bom ser reconhecido, mas notando também que é próprio dos artistas e escritores sofrerem de algum narcisismo, daí também a sua reserva em participar em festivais. Agradeceu a homenagem e retirou-se. Na véspera tinha apresentado o seu mais recente título, "Diário de Viagens Fora da Minha Terra" (também editado pela Opera Omnia), outro livro que alinha no registo desassombrado, lúcido e tantas vezes abertamente crítico das suas memórias. Com uma prosa que, em muitos aspectos, é o mais fiel espelho do retrato que tantos amigos e colaboradores dele pintam nas homenagens que lhe têm dirigido, destaca-se como um verdadeiro "homem de palavra(s)". De resto, Eugénio Lisboa nunca turva as águas da sua escrita para as fazer passar por mais profundas do que são. Nas suas crónicas no "Jornal de Letras" como nos ensaios, sente-se que a escrita existe por referência à vida. Não pretende que esta seja um fim em si mesmo, que rapte os sentidos do leitor, antes os expanda e devolva ao mundo; exerce a sabedoria como uma educação virada para fora, sendo um dos mais fulgurantes exemplos do espírito cosmopolita que foi marcante no perfil da elite portuguesa em Lourenço Marques.
Depois, há a candura nas suas palavras, a forma como continua a ter a paciência de quem parece ser eterno, a afabilidade na resposta a quem o procura. Em sua homenagem, houve já quem se lembrasse do que escreveu certa vez Paul Valéry, palavras que lhe assentam perfeitamente: "Os homens verdadeiramente grandes estão muito próximos dos outros pela mesma simplicidade que os afasta até ao infinito. Porque os homens verdadeiramente grandes conservam, na sua relação com as coisas profundas e difíceis com as quais estabelecem sua intimidade, as mesmas atitudes que têm com toda a gente; são ao mesmo tempo familiares, delicados e verdadeiros." O i aproveitou para entrevistá-lo, focando as questões na sua experiência nos países da lusofonia ou em defesa da cultura, seja enquanto escritor seja na qualidade de diplomata. Eugénio Lisboa passou a sua vida nas latitudes e longitudes mais diversas, tendo referido em 2010 que tinha "38 anos de Moçambique, onde nasci, 17 de Inglaterra, 23 de Lisboa, um ano de África do Sul e um ano de Suécia".
Ao fim destes anos todos, e de tantas viagens, que terra sente particularmente como a sua terra?
Costumo dizer que não sou um desenraizado, mas um enraizado com múltiplas raízes. Mas a minha terra é aquela onde nasci, Lourenço Marques, em Moçambique. Embora esteja também já muito ligado a Portugal. Vivo aqui desde que regressei das minhas viagens. Estou cá há 21 anos. Diria que o meu coração está partido entre Lourenço Marques e Lisboa.
Quais lhe parece que são actualmente os desafios que enfrenta a lusofonia?
Não há nenhum grande desafio senão o do seu próprio desenvolvimento. A língua portuguesa é uma das línguas europeias com mais falantes, mas estou convencido de que o que há a fazer, muito mais do que divulgar a nossa cultura através de traduções – que é sempre, a meu ver, um processo de segundo grau… Não acredito que os nossos grandes poetas possam ser reconhecidos enquanto tal por via da tradução. Eles têm de ser lidos no original. Portanto, muito mais do que despendermos energias e dinheiro em traduções (o que também tem de ser feito, diga-se de passagem), o importante é trazer mais pessoas ao conhecimento da nossa língua. É divulgar a nossa língua lá fora, através de escolas, de universidades, de maneira a que os falantes da nossa língua lá fora aumentem e eles possam tomar conhecimento directo da nossa cultura e não pelo veículo mais fraco da tradução. A divulgação da língua deve ser feita lá fora a partir do ensino básico e secundário. Nós em geral investimos no ensino da nossa cultura e da língua nas universidades, mas estas têm de ser alimentadas de baixo. É muito importante, em países como a Inglaterra e a Alemanha, que o português se ensine ao nível da primária e secundária. É pela educação de indivíduos capazes de ler e escrever o português, que a nossa cultura pode ser divulgada como merece. Não acredito que alguém dê pela verdadeira grandeza do Fernando Pessoa em tradução. Vão atrás da historieta romântica dos heterónimos mas na verdade a grandeza da linguagem poética do Pessoa não se transfere numa tradução, a não ser muito raramente. Há uma tradução magnífica do “Tabacaria” feita em Inglaterra pela Suzete Macedo, mas isso é a excepção. De uma maneira geral as traduções são relativamente medíocres. Como notou o poeta sul-africano Roy Campbell, a poesia é que se perde na tradução. Aquilo que não se traduz é que é a poesia.
Se a língua portuguesa tem um número tão expressivo de falantes, por outro lado, e em comparação com o mundo anglófono ou hispânico, parece haver uma fractura dentro da lusofonia, havendo menos intercâmbio cultural entre os países que a compõem.
Há um problema que está na base disto tudo e que se prende com a força económica dos países. O mundo castelhano tem por detrás um poder económico e financeiro, para não falar do mundo anglo-saxónico, que conta com a Grã-Bretanha, EUA, parte do Canadá, Austrália, África do Sul… Há todo um motor de arranque financeiro que esses mundos têm que nós não temos. Nós temos o Brasil, mas até esse parece ter-se vergado sob o seu próprio peso. Angola e Moçambique não têm, por enquanto, esse poder. Quando o mundo lusófono for economicamente significativo, e puder alimentar esse motor de arranque, creio que a situação mudará. Hoje quando comparamos o universo editorial, o espanhol é uma coisa espantosa, a diversidade das colecções e catálogos que eles têm… Nós não dispomos dos mesmos meios, e sobretudo não temos a respeitabilidade económica, não temos força económica para nos tornarmos apetecíveis. Mesmo assim é impressionante as vias que temos aberto. Nomes como o Fernando Pessoa… embora a meu ver seja conhecido não da maneira adequada, mas é conhecido. O Eça de Queirós… Quando estive em Londres fiz uma reedição d’“Os Maias” e a crítica inglesa postou-se de cócoras perante a grandeza do livro. Simplesmente, são grandes clássicos que impressionam o mercado durante um determinado período e depois eles esquecem-se deles. Tem de se voltar a acordá-los daí a 20 ou 30 anos. A primeira vez que “Os Maias” abriram brechas no imaginário anglo-saxónico foi, salvo erro, em 1965, quando foram traduzidos pela primeira vez, e esteve na lista de bestsellers da Time Magazine durante semanas e semanas. Os fulanos diziam que para se encontrar universos comparáveis é preciso recorrer a Stendhal e Tolstói. Mas passados dois, três anos esquecem-se.
Este ano o Prémio Camões foi ganho pelo Raduan Nassar depois de ter sido traduzido para inglês um dos seus livros (“Um Copo de Cólera”), que recebeu destaque por ter figurado na short-list do Prémio Man Booker… Há também o caso da Clarice Lispector que para se afirmar comercialmente em Portugal como no Brasil esteve à espera do sucesso nos EUA, depois da biografia de Benjamin Moser. Não lhe parece que a lusofonia não só é frágil economicamente mas ainda se fragiliza culturalmente indo a reboque do que se passa lá fora?
Sim, há também isso. O desempenho da Clarice Lispector lá fora é uma fuga. O Machado de Assis também já foi traduzido, mas a literatura brasileira não faz parte do património corrente do mundo anglo-saxónico. Quando têm de se lembrar de um gigante na ficção nunca lhes vem à memória o Machado de Assis, o problema é esse. Nós ainda não nos implantámos de vez lá. Quando “A Ilustre Casa de Ramires” [romance de Eça] foi reeditado, o [crítico literário] Jonathan Keats, no “Observer", salvo erro, perdeu literalmente a cabeça com o livro. Ele dizia que se o Flaubert precisasse de matar a mãe para escrever um livro como este o faria. Mas isso não fica. Se agora for perguntar a um inglês nas universidades se alguma vez ouviu falar de Eça, ele nem faz ideia. Apesar dessas críticas absolutamente ditirâmbicas do Keats, e do que o próprio George Steiner disse d’“Os Maias”. No momento há uma série de ondas que se erguem, mas isso depois não se incrustra como património permanente.
Em reacção a uma das últimas entrevistas de Lobo Antunes, fez-lhe uma crítica devastadora depois de, a propósito de Fernando Pessoa, este ter questionado se um homem que não fodeu pode ser um bom escritor…Pensa que os escritores portugueses, talvez por não encontrarem um espaço próprio de afirmação cultural, acabam por alinhar no vaudeville para animar as hostes e chamar a atenção?
É aquilo a que eu chamo meter a mão na máquina. O Anatole France contava que um rapazito sofria muito porque os pais não lhe davam atenção, ele fazia trinta por uma linha para os cativar e eles não lhe ligavam meia. Em desespero, o miúdo meteu a mão numa engrenagem mecânica e perdeu um braço. Nesse momento os pais deram por ele. Quando vejo o Lobo Antunes meter-se nessas picardias digo que está a meter a mão na máquina.
Está prestes a encerrar a publicação dos seus volumes de memórias. No espaço da nossa cultura é cada vez mais raro uma figura dar-se ao trabalho de deixar o testemunho do tempo que viveu. Sente-se a gritar para um poço?
Espero que o livro deixe uma marca que, pelo menos, dure algum tempo, que não morra imediatamente a seguir. Procurei fixar momentos, situações, leituras que me marcaram profundamente, nalguns casos a fogo. A minha esperança e ambição é que isso não morra comigo. Que fique.
Nos encontros que teve, literários ou outros, quais foram as figuras que o marcaram decisivamente e que espera que o seu testemunho ajude a que sejam lembradas?
Há duas categorias: Uma é a das figuras públicas, a outra é a das pessoas que me são familiares, o meu sangue. O próximo volume das memórias, o epílogo, é dedicado à minha mulher que faleceu há sete meses. A figura dela e das minhas filhas, são figuras que gostaria que não fossem esquecidas. Entre as figuras públicas, aquelas que me marcaram foram, por exemplo, o José Régio. Alguém que, no convívio pessoal, quotidiano, epistolar, me marcou muito. Outra figura com quem estive um único dia e me impressionou profundamente foi o António Sérgio, o ensaísta. Das figuras que mais me marcaram houve, além destes, dois ou três professores no liceu. Influenciaram-me muito mais do que os professores que tive depois na Universidade. O Dr. Cardigos dos Reis, a Dra. Maria Luísa Soares, de quem eu falo nas minha memórias, são figuras que eu gostaria que ficassem como exemplares pela sua acção no campo da pedagogia, até da sua identidade e marca pessoal, foram pessoas que me deram vontade, quando era um aluno do liceu, de ambicionar ser como eles.
A diferença do liceu dos seus tempos, serve-nos de testemunho de um tempo em que os liceus tinham a verdadeira função de uma verdadeira universidade. Hoje nem o liceu nem, muitas vezes, as universidades têm esse carácter tão abrangente, tão exemplar, na transferência de conhecimentos. E hoje a maioria dos professores universitários não são sequer figuras muito marcantes no contexto público.
Sim, não são conhecidos nem deixam uma marca forte. Houve uma degradação de estatuto muito grave. Já senti essa diferença quando vim do liceu de Lourenço Marques para o Instituto Superior Técnico, onde tive dois ou três professores de grande calibre, mas o resto fazia-me ter saudades dos professores do liceu.
Parece-lhe que os últimos governos têm sabido valorizar o papel do ensino público para afirmar a cultura?
Tem de se aumentar a auto-estima do professor e o prestígio da imagem que eles projectam na sociedade. Os bons professores no meu tempo tinham uma influência enormíssima na sociedade. Eram gente grande. Acho que temos de voltar a transformar os grandes professores do ensino secundário e básico em figuras importantes do nosso meio social.