"Há memórias e há bisbilhotices políticas", defende Sócrates, que diz que Cavaco Silva ultrapassou uma linha que nunca nenhum outro político tinha passado ao revelar conversas tidas em privado nas reuniões entre Presidente e primeiro-ministro em Belém.
"Este livro é um livro extraordinário e inusitado. Nunca um ex-primeiro-ministro ou um ex-Presidente da República sentiu necessidade, para explicar fosse o que fosse aos portugueses, de escrever um livro", começou por dizer José Sócrates, defendendo em entrevista à TVI que "há muito boas razões para isso, desde a educação até ao sentido de Estado".
Para José Sócrates, o que o antigo Presidente faz no seu livro de memórias é "transformar essas conversas [das reuniões das quintas-feiras] num ataque político traiçoeiro".
Sócrates vê no episódio das escutas de Belém um "momento de inversão" nas relações com Cavaco e considera-o revelador da "conjura" que acredita ter sido levada a cabo pelo Presidente para deitar abaixo o seu governo.
"Neste caso, nós temos provas, temos provas de que não foi assim. Temos um mail em plena campanha eleitoral em que o jornalista conta a história", apontou, considerando "absolutamente repugnante" o que é revelado num email de um jornalista do Público sobre a forma como o assessor da Presidência lhe terá passado informações sobre as desconfianças de Cavaco, que suspeitava estar a ser vigiado pelo governo e quis passar essa informação ao jornal.
Na TVI, Sócrates leu o email e citou as memórias de Fernando Lima, que revela ter agido de acordo com as indicações superiores que recebeu, para tentar provar que Cavaco Silva montou todo o episódio das escutas para prejudicar o PS em plena campanha eleitoral.
"É a prova de que o senhor Presidente mente no livro", conclui Sócrates, que chama a Cavaco "maldoso e deturpador dos factos" e confessa ter um sentimento de "repugnância" ao ler o email.
"Eu não tinha ideia de que isto fosse possível", afirmou Sócrates, que diz hoje não ter dúvidas das intenções do ex-Presidente. "Houve uma conspiração do senhor Presidente da República", declara, sem hesitar na qualificação de Cavaco.
"Um homem que é capaz de fazer isto é capaz de fazer tudo. É um homem que usa métodos infames de fazer política", apontou, acusando Cavaco de ser "capaz de inventar uma história e de colocá-la nos jornais".
"A verdade não está do lado do ex-Presidente da República", assegura, dizendo que Cavaco "sempre manobrou na sombra".
Passos mentiu, garante Sócrates
"Não tem moral para falar de lealdade quem foi capaz de fazer uma coisa destas", afirmou Sócrates, que também tem uma versão diferente sobre o chumbo do PEV IV que esteve na origem da sua demissão e das eleições antecipadas que levaram Pedro Passos Coelho ao poder.
Para Sócrates, "o senhor Presidente da República foi completamente indiferente ao interesse do país" e Portugal poderia nunca ter sido obrigado a pedir a ajuda da troika caso o programa de austeridade conhecido como PEV IV tivesse sido viabilizado pelo PSD no Parlamento.
"O que provocou toda a subida dos ratings foi chumbar o PEC IV", afirmou, explicando que tinha conseguido um acordo com a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu que faria com que Portugal fosse protegido caso fossem aplicadas as medidas do PEV IV.
"No chumbo do PEC IV é que Portugal teve de pedir ajuda", assegurou, garantindo que explicou isso mesmo ao então líder da oposição num encontro pessoal.
"Eu informei o Dr. Passos Coelho, eu informei-o", repetiu, explicando nunca ter tornado público esse encontro por ter sido esse o combinado com o líder do PSD.
"Comprometi-me nessa reunião a não revelar essa reunião", revelou, atacando a forma como PSD e CDS fizeram oposição nessa altura, mas também como a fazem agora "sempre atacar o carácter do primeiro-ministro" em debates quinzenais nos quais António Costa tem sido repetidamente acusado de ser "mentiroso".
"A direita política o que tem na cabeça é quando não consegue vencer ir ao carácter", observa.
Mas José Sócrates assegura que não deixará sem resposta qualquer ataque de que venha a ser alvo. E diz mesmo que ainda vai acabar a leitura do livro de memórias de Cavaco Silva, admitido voltar à carga sobre o que lá vier escrito sobre si.
"A partir de agora não deixarei de me defender sempre que me atacarem", avisa.
Teses do Ministério Público coincidem com as de Cavaco
José Sócrates regista a "consonância entre as insinuações do senhor Presidente da República e as suspeitas do Ministério Público" e aponta o que considera serem falsidades no que Cavaco escreveu sobre um concurso para uma auto-estrada em Trás-os-Montes.
No livro, Cavaco Silva afirma que "o governo pediu uma garantia bancária" à CGD para um dos consórcios que concorreram à construção dessa estrada, mas essa é uma tese que Sócrates desmonta.
"Nunca houve nenhuma garantia para nenhuma empresa que concorreu à auto-estrada", assegurou, dizendo que Cavaco afirma no livro que "essa conversa foi em 2009", mas isso seria impossível porque "o concurso foi em 2007".
Sobre o processo de que está a ser alvo e cujo prazo de acusação deve acabar no dia 17 de março, o ex-primeiro-ministro considera que "há uma motivação política".
Sócrates recordou, aliás, que "este inquérito dura há 43 meses" quando "o prazo máximo é de 18 meses" e refutou a ideia de ter tido qualquer relação com o negócio da venda da PT, acusando o Ministério Público de ter andado a mudar o objeto da acusação ao longo de todo este tempo.