Paulo Núncio admitiu ontem ter decidido não autorizar a publicação das estatísticas relativas às transferências para offshores entre 2011 e 2014 por ter “dúvidas” sobre se a sua publicitação poderia “beneficiar o infrator” ou gerar “confusão” por misturar operações não sujeitas à cobrança de impostos e outras tributáveis. Assumiu ter tomado essa decisão “sozinho”, sem nunca a discutir com mais nenhum membro do governo ou da administração fiscal. Mas ficou por esclarecer por que motivo esses 10 mil milhões escaparam ao crivo da inspeção do fisco.
Software descontinuado
Fernando Rocha Andrade explicou ontem que estas transferências não entraram no sistema informático da administração fiscal, apesar de terem sido declaradas pelos bancos à Autoridade Tributária – motivo suficiente para o deputado do PSD Leitão Amaro falar num “bug informático”. Mas o motivo pelo qual os dados não passaram das declarações para o sistema informático central ainda está por apurar.
O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais explicou ontem que a falha na entrada dos dados só foi conhecida porque eles foram usados para servir de base às estatísticas que – ao contrário do seu antecessor – decidiu ser importante publicar.
Rocha Andrade chamou-lhe uma “falha” e explicou que os 10 mil milhões de euros só foram descobertos quando o seu gabinete estranhou que, em 2015, as transferências para offshores fossem 22 vezes superiores às que constavam no sistema para o ano de 2014.
Rocha Andrade quis saber junto dos serviços por que motivo as transferências passaram de 400 milhões para nove mil milhões e a Autoridade Tributária respondeu “que tinha sido detetada uma falha nos dados relativamente a 2014”.
“A mesma falha, embora de menor dimensão, afetava os dados relativos a 2013, 2012 e 2011”, explicou Rocha Andrade, que diz ter havido “problemas na transmissão de informação do Portal das Finanças para o sistema central”. Tinha sido usado software que foi descontinuado em novembro de 2016 e a correção foi feita usando “outra tecnologia em relação às declarações de 2015 que permitiu que os dados de 2015 não apresentem erros”.
Se houve apenas uma falha informática ou de outra natureza é algo que está a ser apurado num inquérito da Inspeção-Geral de Finanças aberto a pedido de Rocha Andrade.
O problema é que “esta omissão não afetava apenas a publicação, afetava todo o controlo inspetivo”. Ou seja, as transferências de offshores que estavam no sistema central puderam ser objeto de inspeção, “as que não constavam no sistema central não foram objeto de qualquer procedimento inspetivo”.
Rocha Andrade diz não ter “nenhum facto que indicie” que houve ficheiros adulterados ou rasurados e aconselha a esperar pelas conclusões da IGF.
Quanto à responsabilidade política do caso, Paulo Núncio quis assumi-la toda sozinho. “Não partilhei esta informação com mais nenhum membro do governo. A responsabilidade é só minha e só a mim pode ser assacada”, afirmou ontem durante a audição na Comissão de Orçamento e Finanças sobre o motivo que o levou a não autorizar a publicação de estatísticas sobre transferências para paraísos fiscais entre 2011 e 2014.
Ex-ministros serão ouvidos
Núncio ilibou politicamente Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque, mas os dois ex-ministros das Finanças de Passos Coelho terão mesmo de vir dar explicações sobre o caso ao parlamento. É que o PS anunciou ontem um requerimento para ouvir Maria Luís e Vítor Gaspar na Comissão de Orçamento e Finanças.
Núncio explicou a sua decisão com “dúvidas” sobre os benefícios da publicitação de estatísticas, mas não esclareceu por que motivo só ontem confessou essas “dúvidas” e nunca o fez nem enquanto foi secretário de Estado dos Assuntos Fiscais nem nos dois comunicados que emitiu na semana passada.
Paulo Núncio disse desconhecer em absoluto informações relacionadas com os 10 mil milhões de euros que não entraram no sistema informático e insistiu na ideia de que considera não estar obrigado por lei a publicar estatísticas sobre transferências para offshores – isto apesar de num dos comunicados emitidos na semana passada ter dito entender que a Autoridade Tributária não precisava da sua autorização expressa para a publicação por se aplicar um despacho de 2010 do secretário de Estado Sérgio Vasques.