“À espera de chegar ao outro mundo de noite/ já que de dia não vem”, faz-se o possível e algo além disso nas costas dos vigilantes, aqueles que, das vingativas retaguardas, organizam silêncios montando a grande barulheira das coisas banais a que atribuem os mais altos valores. Mantêm ancoradas todas as naus, bordando um “rio deitado contruído ensonado”, como zona de despejo dos seus meteoritos que desaguam no mar como triste frota de lixo.
Os avanços de décadas passam em segredo, as mais improváveis descobertas tornam-se a caixa de jóias de um futuro colocado sob quarentena, e à luz ficam as redundâncias sorvidas à distância e pela palhinha de um “provincianismo radiante de o ser”. Mário Cesariny foi um desses artistas que pagou caro a insubordinação aos seres de natureza fixa. “A sabedoria excomungou-o”, mas porque às tantas não havia jeito para contornar a sua grandeza – sendo-lhe absolutamente inegável a condição de poeta maior – sob o risco de se passar por besta, estrategicamente, as bestas resolveram então negar-lhe a condição de grande pintor. José-Augusto França teve um papel central nesta campanha de rebaixamento de uma obra plástica a que hoje já se reconhece o mérito de ter sido precursora no capítulo do informalismo.
Não é menor o mérito do Dr. França, que além de se ter mostrado “exaustivamente atento ao Movimento Marítimo – entradas e saídas de barcos a vapor” pelo tal rio, ter elevado de preconceito a lenda a sua contenda com Cesariny, que o deixou a ele e a outros, abandonando o primeiro grupo surrealista, que logo se dissolveu e deslizou para outros compromissos. Aqueles não tiveram direito a mais que ter os nomes nos créditos de um filme em que não foram mais que actores secundários, talvez até figurantes.
A propósito de algumas pinturas de Cesariny, disse Natália Correia que eram “obras para serem entendidas por quem as merecer”. Quando é assim, quando não há subsídio de inserção que nos valha, é natural que muita gente fique à porta, organizando piquetes, impondo as “barreiras aduaneiras que tanto têm impedido os bons entendimentos”.
Qualquer retrospectiva sobre a obra plástica de Cesariny obriga, pelas razões apontadas, a um esforço prospectivo. “É que isto ainda dá horas ainda é tempo de querer”. E sobre os dez anos da morte do artista, alguns amigos e cúmplices têm procurado a reparação de danos, estando programada uma série de acções no sentido de lhe prestar tributo. Depois da evocação no Cemitério dos Prazeres, realizada em Dezembro por ocasião da passagem dos seus restos mortais para um monumento definitivo, inaugurou esta semana uma breve exposição antológica no Centro Cultural de Belém.
Patente até 17 de Abril no Centro de Congressos e Reuniões do CCB, “Mário Cesariny: De cor e salteado” não vai muito além de um gesto simbólico. Uma orelha daquele imenso e nobre espaço que se deixa furar por um pouco mais de 30 obras cedidas pela Fundação Cupertino Miranda. O presidente do CCB, Elísio Summavielle, adiantou que a instituição irá aproveitar a celebração do Dia Mundial da Poesia – que sendo a 21 de Março, será assinalada no sábado seguinte, que calha no dia 25 –, com uma série de evocações do autor, incluindo a estreia mundial de uma composição de Christopher Bochmann feita a partir dos seus versos e uma maratona de leituras “por diferentes personalidades”. A instalação vídeo “Poema Colagem – Homenagem a Mário Cesariny”, o documentário de Miguel Gonçalves Mendes sobre o artista, “Autografia”, que recentemente regressou às salas em versão restaurada, e uma conversa sobre o artista também integram o tributo, de entrada gratuita.
Teremos de esperar por Outubro pelo momento alto de todo este tributo, altura em que a Assírio & Alvim publicará reunida num único volume a poesia completa de Cesariny, numa edição crítica que assume importância acima de tudo por integrar poemas que não surgiram antes em nenhum dos livros individuais, como explicou o editor Manuel Rosa à Lusa. “Mário Cesariny alterou poemas de uns livros para os outros e alguns não encontraram publicação recente. Alguns foram publicados avulsamente em antologias dispersas ou revistas surrealistas internacionais, que nunca encontraram lugar em livro e vão agora integrar a edição crítica”, acrescentou. Há uma série de outras edições e reedições importantes e que foram anunciadas como parte do extenso programa de comemorações.
Voltando à exposição: se a recolha é limitada e assim mesmo o espaço que ocupa causa um efeito de excessiva concentração, inadvertidamente isso provoca uma sensação que é bastante esclarecedora sobre a diferença do trabalho plástico de Cesariny. Parece que estamos num quarto onde o sol que se inventou não serve de fundo para as cortesias de salão, não há uma só obra que nos pareça estar ali a funcionar decorativamente.
Há um sufoco neste quarto-cela, e cada risco, cada pequeno triunfo sobre o baixo quotidiano, elevando-o, o desembaraço com que este pintor inventa os seus meios, servindo-se de tudo o que possa sujar para que suje a realidade de tal forma que a limpe. Sejam as marcas de café, ovo, uma série de processos fortuitos ou acidentais, o modo como o artista “risca lentamente o ar com o braço/ numa forma de música de concerto”.
Algumas destas obras, das mais antigas da colecção de Cesariny, tornam claro por que começou por chamar as suas pinturas de “tinturas”. São como flores arrancadas aos trejeitos de um maquinista. Coisas animadas e atraídas pelo processo de alguém com luz própria e que marca o espaço em volta, como se pudesse pôr a descoberto os efeitos daquele tremor de terra que alguns pressentem “dentro da pele das coisas/ dos astros/ das coisas/ das fezes/ das coisas….” Aqui, o artista descreve um movimento de rotação sobre si e transfigura a sua cratera, de tal modo que a própria jaula e os dias adquiram um gosto a protesto. ("Prendei-o. Viverá de tal forma/ que as próprias grades farão causa com ele.")
Ainda ‘emocionados’ pelo efeito da fabulosa exposição com que a Gulbenkian homenageia por estes dias o génio de Almada Negreiros, é muito claro como esta mostra breve de Cesariny é sinal mais do que suficiente de um artista que não se pôs a decorar um país ajoelhado a um “borra-botas” feito Sebastião. Na arte plástica de Cesariny está presente a convicção dos pequenos gestos cuja beleza nasce da sua ultrapassagem e ofensa a uma ordem que põe os espíritos de quatro. Num tempo em que só se podia ser inteiramente com licença superior, e dentro de uma moral estreitíssima com “mais vácuo nos dentes que a baleia nas tripas”, Cesariny teve dimensão para se rebelar e pôr do seu lado o silêncio ultrajado de todas as coisas, e “no entanto disse alto e verdadeiro amor”. Esta exposição, com o seu infeliz título, metida num canto do CCB, é como um Jonas que a partir do ventre da baleia fizesse as suas orações visuais não ao “Deus que é católico” mas ao outro, o que prefere os desregrados, os que só olham a meios, e não se interessam tanto pelos fins. “Liberdade, Amor e Poesia” eram os meios que não se enganavam sobre o nosso verdadeiro fim: a morte.