Hélia: um nome suficientemente evocativo da Grécia Antiga, uma geografia que, embora não alheia ao enigma e aos signos do obscuro, se impõe pela sua luminosidade. Uma predestinação, se pensarmos que a autora cedo se enamorou dos Gregos e da cultura helénica, com a qual tem mantido um diálogo íntimo e continuado. Mas também uma ironia, pois é conhecida a incompatibilidade de Hélia Correia (Lisboa, 1949), Prémio Camões 2015, com o sol: os seus livros, sensíveis às condições meteorológicas, apenas aceitam ser trabalhados em dias de chuva.
Reconhecida e justamente premiada sobretudo como romancista, Hélia Correia, revelada em 1981 com a novela O Separar das Águas, a que logo fez seguir O Número dos Vivos (1982), privilegia declinações discretas da sua existência de escritora. As suas primeiras experiências literárias situam-se no campo da poesia, a começo dispersamente publicada em jornais e revistas, embora se tenha encaminhado depois para a ficção narrativa.
A nota final do volume Contos (2008), livro onde então reduzia a sua produção contística ao essencial («Dos contos que escrevi, só gosto destes») diz bem quer da sua exigência (e desarmante sinceridade), quer de um gesto de depuração frequente no domínio da poesia, mas raro em ficcionistas. Essa exigência manifesta-se também na superfície textual das ficções sobreviventes, trabalhadas com extremo cuidado, como se a autora de Vinte Degraus e Outros Contos (2014), livro pelo qual recebeu o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco, sopesasse cada frase, cada metáfora, cada palavra.
Lillias Fraser (2001) e Adoecer (2010), romances muito aplaudidos pela crítica, ocupam na literatura portuguesa um lugar marcante. O primeiro, distinguido com o Prémio de Ficção PEN Clube 2001 e o Prémio D. Dinis 2002, acompanha a vida de uma rapariga dotada de estranhos poderes de vidência, desde a fuga da sua Escócia natal até à chegada a Portugal, onde se depara com o terramoto de 1755, descrevendo as suas terríveis consequências. O segundo, que combina habilmente espessura e nitidez, registo biográfico e efabulação poderosa, sem dúvida um dos melhores que a literatura portuguesa conheceu neste início de século, começa por ser a história de uma fascinação: a fascinação de Hélia Correia por Lizzie, Elizabeth Siddal (1829-1862), uma das musas dos pintores Pré-Rafaelitas, para quem posou em quadros célebres como Ofélia, de John Everett Millais, ou Beata Beatrix, de Dante Gabriel Rossetti. «Nada dela me é estranho», escreveu a autora, que leu todos os livros que se escreveram sobre a modelo ruiva, que seguiu todos os seus passos.
O exercício seguro da sua escrita irradia uma aura estranha, inquietante e uma atracção irreprimível por situações insólitas, a instalarem-se por vezes no quotidiano, que a têm aproximado quer da poesia, que, em boa verdade nunca se ausenta dos seus livros, quer da literatura fantástica (Montedemo, 1987; A Casa Eterna, 1991), quer de uma atmosfera de loucura (Insânia, 1996).
Escritora de pessoalíssima dicção, licenciada em Filologia Românica, Hélia Correia é também criadora de uma nova espécie de harmonia, situada para lá da vontade humana de quem escreve. Como se a escrita adquirisse música e vida própria e irradiasse uma energia mágica cujos ecos se repercutem e amplificam ao longo dos tempos, lugares e personagens, abrindo horizontes sempre novos e surpreendentes.
A Terceira Miséria, livro que valeu à autora o Prémio de Poesia PEN Clube 2012 e o Prémio Correntes d’Escritas / Casino da Póvoa 2013, marca o seu regresso à poesia e aos clássicos, numa dívida confessada na última página deste livro, onde figuram vários nomes, de Ésquilo a Maria Gabriela Llansol, passando por Nietzsche e Friedrich Holderlin. Este longo poema, porque de um só se trata, parte justamente da célebre e devastadora pergunta de Hölderlin: «Para que servem os poetas em tempo de indigência?»
É durante a sua breve participação na peça Édipo Rei que, em 1988, Hélia Correia se aventura no seu primeiro texto dramático, Perdição, Exercício sobre Antígona, publicado três anos mais tarde e levado à cena em 1993 pela companhia que a iniciara nas artes do palco, a Comuna. Escrevia assim a primeira de uma trilogia que, privilegiando grandes figuras femininas da antiguidade clássica, testemunhava o seu fascínio pelo teatro grego. Seguiram-se O Rancor, Exercício sobre Helena (2000), e Desmesura, Exercício com Medeia (2006). Ainda no domínio do teatro, a autora publicou Florbela (1991), uma peça que lida com a criatividade feminina no contexto dos condicionalismos do cânone masculino.
Produto da sua «relação amorosa» com a Grécia é também Mopsos, o Pequeno Grego. O Ouro de Delfos, a marcar o início de uma colecção de aventuras onde o pequeno neto de Tirésias, o mais destacado dos adivinhos gregos, assume a função de conduzir a curiosidade de um público infantil no desvendar dos tesouros insuspeitados da cultura grega – um conto para todas as idades, ilustrado por Henrique Cayatte e conduzido pela mão ágil e sensível de Hélia Correia, que em 2013 foi distinguida com o Prémio Virgílio Ferreira pelo conjunto da sua obra.
É sabido que a sua vida, os gatos ocupam, a par da escrita, um importante lugar. Eis as duas sujeições que Hélia Correia há muito tornou públicas. Ambos instalaram dentro da sua vida um «trono vitalício», comportando-se com igual sobranceria: «Vêm se querem, quando querem, para que os sirva, mas se sou eu a convocá-los, não me ligam. Se entendem que lhes devo abrir a porta, chamam às horas mais desconfortáveis. Lá me levanto, às quatro da manhã, ou para escrever ou para deitar whiskas no prato. A retribuição é coisa pouca: um roçar pelas pernas, uma frase. E eu, ciente da minha condição, renunciando à dignidade humana, agradeço a bondade do incómodo.»