«Haverá gente com nomes que lhes caiam bem. Não assim eu. […] Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus/ de Vasconcelos?» (Pena Capital, 1957). Deste poeta-pintor sempre se pôde esperar o inesperado. Figura maior do Grupo Surrealista de Lisboa, que co-fundou em 1947, depois de uma visita a André Breton, expoente máximo do Surrealismo português (cuja história, já feita, declarava impossível), insurgiu-se contra o seu próprio nome, recusando uma identidade socialmente imposta para se assumir enquanto poeta, para viver livremente em poesia: «Sou um homem/ um poeta/ uma máquina de passar vidro colorido» («autografia»). E também uma máquina de gerar confronto e polémica.
O pai queria-o ourives e inscreveu-o na Escola de Artes Decorativas António Arroio, mas a mão de Cesariny, que chegou a pender para o piano (como testemunham as aulas de música particulares tidas com Fernando Lopes-Graça), acabou por oscilar entre a «(des)pintura» e a poesia. Esta, com um teclado que vai dos ímpetos de agressividade a uma atitude profundamente lírica, da desmistificação insolente à ternura tocante, como privilegiadamente comprovam os livros Pena Capital (1957), Manual de Prestidigitação (1981) ou O Virgem Negra. Fernando Pessoa Explicado às Criancinhas Naturais & Estrangeiras (1989) ou ainda Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação pelo Autor e Um Auto para Jerusalém (1964), texto de índole teatral, inserido no clima que sacudiu fortemente as letras portuguesas.
Alquimista do Verbo, Mário Cesariny afastou-se do ouro com que chegou «a fazer brincos, anéis e muitos broches», para aprofundar a descoberta do «metal fundente» que se interpõe «entre nós e as palavras, os emparedados/ e entre nós e as palavras, o nosso dever falar», como se lê num dos seus poemas mais emblemáticos: «You Are Welcome To Elsinore». E Cesariny não mandou recados: falou.
Definitivamente rendido à declinação surrealista, trocou o Neo-Realismo, irónica e sarcasticamente questionado nos textos de «Nicolau Cansado Escritor», pela prática de André Breton, dinamizada em exposições, em conferências, na publicação de folhas volantes, na organização de antologias como a Antologia do Cadáver Esquisito (1961), Surreal/Abjeccion(ismo) (1963), A Intervenção Surrealista (1966), Primavera Autónoma das Estradas (1980) ou Horta de Literatura de Cordel (1983), mas também na sua obra plástica, designadamente nos seus «quadros-pés-de-mesa-de-galo» – assim designa Bernardo Pinto de Almeida a sua pintura –, que rompem com a dimensão figurativa da prática nacional.
No desejo de transformação e de mudança radicais num Portugal então esmagado pelo salazarismo, à gravidade dos chamados valores de Braga (Religião, Pátria, Família) ousou contrapor a cultura do riso e a utópica trindade surrealista: Liberdade, Poesia e Amor. Ao interdito respondeu com o «amour fou».
Avesso a tutelas, a ditames, a cânones, a auréolas mitificadoras e aos velhos saberes, Mário Cesariny corroeu os mandamentos das poéticas tradicionais, ‘profanou’ orações canónicas do Cristianismo, como o Credo ou a Avé-Maria, com a mesma força corrosiva que fez incidir sobre figuras e mitos consagrados da cultura portuguesa, e negou ao provérbio a sabedoria e o sentido («Alguns Provérbios e Não»). Tudo «no riso admirável de quem sabe e gosta/ ter lavados e muitos dentes brancos à mostra».
Na contestação e na intervenção polémica exercitou o autor do Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952) algumas das forças que caracterizam a sua obra literária, desdenhosa da ordenação cronológica pelos hiatos e desencontros entre as datas da escrita e as datas de publicação, por uma desarrumação que faz eco da sua vida: a fulguração criadora, o poder revolucionário do irracional que traz a poesia para a esfera da vida e vice-versa, o espírito subversivo, um vivo sentido de contestação de princípios e práticas estabelecidas que lança mão do humor, do non-sense e do absurdo.
Nos cafés e nas ruas de Lisboa (nunca em casa escreveu um poema, a crer no seu testemunho) exerceu este sonhador impenitente a sua actividade contestatária: minar pouco a pouco as bases que sustentavam o Portugal fascista e «pindérico» e a ditadura da banalidade artística: «devagar se vai ao mito». Pôs-lhe fim no final da década de ’80, altura em que se afirmou com um esgotamento poético.
Desejou uma «daquelas mortes boas, em que uma pessoa se deita para dormir e nunca mais acorda». A morte chegou, mas Cesariny estava destinado a vencê-la.