António Chora: “Há deputados que vão à AR só para aparecer na televisão”

António Chora reformou–se há um mês. Começou a trabalhar com 12 anos e destacou-se à frente da comissão de trabalhadores da Autoeuropa.

António Chora reformou-se há um mês com 62 anos e mais de 48 de descontos. Começou a trabalhar com 12 anos, a descontar aos 14, e espera que o governo cumpra a promessa de acabar com as penalizações para a geração que começou a trabalhar muito cedo. Em conversa com o i, numa esplanada ao pé da sua casa na Baixa da Banheira, no concelho da Moita, António Chora fala da infância e adolescência, da Autoeuropa, da passagem pelo parlamento e da geringonça.

Reformou-se há um mês. Arrependeu-se?

Posso vir a arrepender-me se continuar a ser prejudicado em termos económicos nos tais 300 e tal euros que é a penalização para quem vem para a reforma antes dos 66 anos, apesar de ter mais de 48 anos de descontos.

Começou a trabalhar muito cedo. Com que idade?

Com 12 anos. Comecei a trabalhar sem descontos em 1967, na primavera de 67, ainda não tinha 13 anos. Comecei a trabalhar nos Depósitos da Covilhã. Nessa altura no Rossio. Vendia cortes de fato para todos os alfaiates de Lisboa. Andava nos elétricos a distribuir desde Benfica à Graça, da Graça a Algés. Tudo o que era alfaiate encomendava os cortes de fatos e lá ia eu nos elétricos a distribuir aquilo.

O que é que fez com que tivesse de começar a trabalhar tão cedo?

Éramos três irmãos, o meu pai e uma avó em casa. Só com o meu pai a trabalhar não havia hipótese de me manter na escola. Portanto saí da escola e fui trabalhar. Esse foi um ano também terrível. Tive um medo incrível, porque quando tinha feito os meus 13 anos, em novembro, houve aquelas grandes cheias de 67 em que morreram dezenas e dezenas de pessoas. Não consegui vir para o Barreiro, não consegui vir apanhar o barco. A água corria desalmadamente. Fui para casa de um tio que vivia e vive em Lisboa. Mas foi um ano dramático. No fundo era um miúdo com 13 anos. E estive lá (nos tecidos) até a primavera de 68, altura em que entrei para uma cooperativa de distribuição de bacalhau onde depois comecei a fazer descontos. Aos 14 anos, em janeiro de 69, comecei a fazer descontos para a segurança social até Janeiro de 2017, quando me reformei.

Tinha a expectativa de não ser penalizado?

Tinha a expectativa porque o ministro Vieira da Silva dizia que durante o ultimo trimestre de 2016 sairia a lei e em 2017 deixaria de haver penalizações. Ao que parece até agora não foi assim.

Sente-se um bocado enganado?

Senti-me um bocadinho enganado. Não sei quantas pessoas estarão na minha situação, mas se calhar os dedos de uma mão contam o total dessas pessoas. O governo não revela quantas pessoas têm 48 anos de descontos com mais de 60 anos de idade. Era uma promessa governamental e o governo orgulha-se de dizer que palavra dada é palavra honrada. Vamos esperar para ver. É uma injustiça grande. Poucas pessoas haverá neste país com 48 anos de descontos e a serem penalizadas em 14%, quase 15%. É muito dinheiro.

Começou a trabalhar ainda no tempo de Salazar.

Comecei a trabalhar e ainda havia Salazar, em 1967. Havia manifestações aqui nesta zona, onde sempre vivi, pelo 1.º de Maio, pelo 5 de Outubro, sempre que um soldado morria nas colónias durante o funeral havia uma manifestação e o grande medo dos meus pais era eu ser envolvido ou envolver-me nessas coisas. Tiveram azar, porque envolvi-me mesmo, muito cedo.

Ter começado a trabalhar cedo tornou-o mais sensível às questões sociais ?

Sabe que aqui a gente naquela altura víamos televisão nas coletividades. Não tínhamos televisão em casa. A televisão foi aparecendo e as coletividades eram a zona onde se concentravam os opositores ao regime.

E tinham alguns problemas com a polícia?

Tínhamos e isso revoltava-me muito. Era um miúdo.

Existe aquela ideia de algumas pessoas de que faz bem começar a trabalhar cedo ou que fez bem a uma geração começar a trabalhar cedo. Como vê essas opiniões?

Não gosto muito dessa ideia. Acho que as pessoas trabalham por necessidade e naquela altura trabalhava-se muito por necessidade. Os meus filhos começaram a trabalhar muito mais tarde do que eu. Os dois depois dos 20 anos.

No seu caso sente que perdeu a infância?

Os bocadinhos para brincar eram aos sábados e aos domingos. As segundas-feiras eram uma tortura. Recordo-me bem como é que as vivia. Ia com o meu pai às seis da manhã para Lisboa.

As crianças eram tratadas como adultos?

Claramente. Ninguém me dava um serviço menor por ser uma criança. Recordo-me de um período em que andei a trabalhar na construção civil, em que teria entre 12 ou 13 anos, antes de ir trabalhar para Lisboa, em que carregava sacas de cré (cré era um pó para barrar portas e depois lixar) e carregava as sacas de 10 e 15 quilos como qualquer outro adulto. Era preciso levar para um terceiro andar – felizmente aqui os prédios mais altos eram de três andares – e quem calhava ir buscar é que ia.

Revê-se naquela imagem de Soeiro Pereira Gomes, nos “Esteiros”…

De certa maneira sim. A minha geração foi talvez a ultima geração dessa imagem.

O 25 de Abril mudou muita coisa na sua vida?

Sim, o 25 de Abril mudou muita coisa. O 25 de Abril fechou o emprego onde estava. Fui para a indústria. Entretanto continuei a estudar de noite. Desde os 14 anos. Fiz o curso industrial. Com habilitações fiz o curso comercial. Para ficar com as duas oportunidades. Mais tarde fiz os complementares de mecanotecnia e eletrotecnia.

E começou também cedo na vida sindical?

Desde 76. Primeiro na construção civil, depois fui para a siderurgia (entrei em 77) e fui logo delegado sindical, até porque já era membro do PCP desde 69, desde as eleições da primavera marcelista e, portanto, foi fácil chegar a siderurgia e depois de ser identificado como militante do partido ser chamado a atividade sindical, porque já as tinha exercido na construção civil e havia ligações. Fui exercendo atividade sindical, fui trabalhando, mas nunca tive a tempo inteiro nessas lides de delegado sindical. Mas o bicho da política ficou. Depois fui para a Autoeuropa em 92.

Como é que foi a experiência de trabalhar com uma empresa alemã?

Foi muito boa. A maior parte das pessoas, dos sindicalistas em Portugal, deveria aproveitar esse tipo de experiências. Não digo copiar, porque somos muito diferentes. Copiar seria um erro, mas podemos aproveitar aquilo que têm de bom.

Existe a ideia de que os alemães são mais eficazes.

Não. Os portugueses que lá estão são tão eficazes ou tão cumpridores como eles.

Estou a falar também dos gestores…

São mais pragmáticos. Os gestores são mais abertos à democracia dentro das empresas e os trabalhadores sentem-se envolvidos nas decisões. Aqui é o posso, quero e mando. Um sindicato à porta da empresa é um escândalo. Se calhar chamam a polícia.

Curiosamente os alemães trabalham menos horas e têm mais férias que os portugueses.

Mais horas e mais dias por ano. Trabalhamos mais que os espanhóis que têm em média 39 horas de trabalho. Os alemães têm 35 horas, mas é preciso ter em atenção que nada foi por decreto. Foi tudo por acordo coletivo. Os alemães caminharam das 45 para as 35 horas. As coisas foram feitas progressivamente. O patrão não podia dar um aumento e dava uma redução do horário de trabalho. Como é que o fazia sem afetar a produtividade? Aumentando os dias de férias individuais. Aqui é tudo muito a regra a esquadro.

Como é que surgiu a ligação ao Bloco de Esquerda. Foi convidado quando deixou o PCP?

Em 1999 pedi a demissão do Partido Comunista e no final desse ano fui contactado para fazer parte do Bloco de Esquerda. O bichinho da política estava cá dentro e eu já acompanhava a evolução das ideias do Bloco e comecei a perceber que havia ali uma maneira diferente de encarar os problemas. O PCP acusa o BE de ser pouco ideológico e tem razão. O BE é mais um partido de causas do que de ideologias. Comecei a encarar o projeto com alguma simpatia e fui integrando o Bloco a pouco e pouco. Acabei por ser eleito para a Mesa Nacional do Bloco.

E, mais tarde, foi eleito deputado. Deve ter sido uma experiência diferente. Como é que viveu essa experiência?

Fui substituir o Fernando Rosas e tive na Assembleia da República seis meses. Foi uma experiência interessante. Aprendi a respeitar o parlamento. Aprendi que quem gosta de trabalhar tem lá muito que fazer. Quem não gosta de trabalhar vai lá só para aparecer na televisão. Há ali de tudo. Aprendi a respeitar alguns deputados pelo trabalho que fazem, apesar de discordar completamente deles. Dou-lhe o exemplo do Pedro Mota Soares. É um homem muito trabalhador, estava sempre a trabalhar, não faltava uma vez na comissão de trabalho e tinha sempre ideias e propostas para apresentar. Discordamos completamente, estamos em lados opostos, somos adversários políticos concludentes, mas temos de saber reconhecer quem são as pessoas que trabalham.

Também viu o contrário?

Vi gente que nunca lá ia. Vi gente que só ia lá para o show-off. Alguns deputados passavam por lá a correr no dia da televisão e quase sempre chegavam atrasados, porque tinha dois ou três empregos fora dali. Isto é verdade, mas é a casa da democracia. Eu vivi o fascismo e, por muitos defeitos que a nossa democracia tenha ou que o nosso parlamento tenha, prefiro ter este parlamento a ter de novo o fascismo ou a ter aquilo a que chamavam o socialismo real.

O parlamento ganhou mais protagonismo com esta solução encontrada à esquerda. Está entusiasmado com esta aliança com o PS?

Acho que finalmente, ao fim de 43 anos, a esquerda teve juízo. Houve várias oportunidades para encontrar esta solução e o PS foi sempre o maior obstáculo a uma solução deste género.

Não aconteceu antes por culpa do PS?

Sim. Há situações que partidos como o Partido Socialista nunca aceitam. Tendo ali à mão a muleta do PPD e do CDS fez coligações com essas pessoas.

O que é que mudou para que o PS desta vez se tenha virado para os partidos à sua esquerda?

O António Costa fez toda a diferença. Fez toda a diferença em relação ao Sócrates e até em relação ao Mário Soares. O Mário Soares é o pai da nossa democracia, é um democrata a 100%, mas nunca foi um anticapitalista. Teve sempre um pé em cada um dos lados entre o capitalismo e a social-democracia. Há verdadeiros sociais-democratas no PS, mas a maioria dos dirigentes do Partido Socialista não são sociais-democratas de esquerda. São pessoas com as quais mexem muitos interesses. No PS há os sociais-democratas verdadeiros e convictos e há aqueles que para quem ser socialista é oportuno e que andam por aí nos gabinetes de advogados.

O primeiro-ministro faz parte dos sociais-democratas verdadeiros?

António Costa é de todos os que por lá passaram o menos mau.

Mesmo assim existem divergências profundas entre o PS e os partidos à sua esquerda. É possível que este governo dure quatro anos?

Espero que dure quatro anos para o bem do PCP e do Bloco.

Podem ser penalizados se romperem a aliança?

O primeiro dos dois partidos que romper esta coligação está morto eleitoralmente. A sombra do Passos Coelho atemoriza os trabalhadores portugueses. Se o Bloco ou o PCP rompessem este acordo por questões ideológicas seriam altamente penalizado. Julgo que tanto o PCP, que é um partido com mais de 90 anos de experiência, como o Bloco de Esquerda, que tem muitas pessoas inteligentes, já perceberam isso. Já perceberam que só podem romper com uma razão muito forte. Só se o PS não cumprir aquilo que está no acordo ou avançar, por exemplo, com um aumento extraordinário de impostos. Seria muito mau o PS ter uma maioria absoluta.

António Costa já disse que está disponível para continuar o acordo mesmo com maioria absoluta

Isso é treta. Nós sabemos que não é essa a matriz do PS.

O Bloco tem conseguido gerir bem uma situação em que, por um lado, apoia o governo, e, por outro lado, contesta medidas tão importantes como a venda do Novo Banco ou os compromissos com Bruxelas?

Aí é que está inteligência de manter este governo. É preciso é saber explicar às pessoas que muitas coisas que hoje têm se devem aos acordos que foram feitos com o Bloco de Esquerda e o PCP. O Partido Socialista sozinho não faria isto à velocidade que o acordo exige. Fazia, se calhar, em oito anos como o PSD queria.

O nome de geringonça incomoda-o?

Acho piada. Sabe que na gíria operária nós dizíamos muito: “então não há peças? Não, mas arranjei ali uma geringonça e aquilo ficou a funcionar”. Esta expressão era muito utilizada na siderurgia nacional. Arranjávamos uma geringonça para pôr as coisas a funcionar e elas funcionavam até vir a peça que era necessária para substituir a que tinha avariado. Às vezes nunca vinha e ficava a geringonça. Não é uma palavra que me afete. Na área industrial nós utilizávamos muitas geringonças para dar a volta aos assuntos. Mas o PSD utiliza essa expressão de forma depreciativa.

Julga que a continuidade de Passos Coelho à frente do PSD ajuda a esquerda a manter-se unida?

Eu sou sportinguista, mas os benfiquistas querem que o Jesus fique muitos anos no Sporting com os resultados que tem. Parece-me um bom exemplo. O_Passos Coelho ainda não percebeu que já não é primeiro-ministro. Aquela bandeirinha na lapela…Acho aquilo muito absurdo.

Apesar de toda a austeridade, Passos Coelho conseguiu ganhar as eleições.

O medo era muito. A campanha de medo que foi feita levou a isso. Estávamos a quatro anos do desastre de Sócrates. Estávamos a oito anos da crise mundial.

Não partilha da ideia de que a culpa de o país ir quase à bancarrota tenha sido da crise internacional?

Foi da crise internacional, mas o Sócrates não soube ver as coisas a tempo. As megalomanias das autoestradas, das Parcerias Público-Privadas (PPP), continuaram, mesmo depois da crise. Não soube reagir a tempo. Não soube parar várias coisas que deviam ter parado e se calhar não tínhamos levado com o Passos Coelho.

Como é que vê este caso judicial em que Sócrates está envolvido?

Acho que a justiça prolonga as coisas demasiado tempo. Aquela situação que foi tomada agora sobre os ex-gestores do BPN… Ninguém vai a julgamento, mas diz-se ao mesmo tempo que havia ali qualquer coisa que não se conseguiu descobrir. Isso cria desconfiança na justiça. Prendem um indivíduo que roubou um chocolate num supermercado e anda à solta e com Chauffeur o antigo dono do BES.

Fica indignado com essas situações?

Isso indigna-me. Ainda há dias ele passou por mim na Ponte Vasco da Gama num carrão e eu a ver os milhões todos a voarem. Isto é que me indigna. O que temos visto até agora têm sido absolvições. A culpa há de ser sempre do porteiro e da senhora da limpeza.

Marcelo Rebelo de Sousa tem dado algum apoio a esta solução governativa. Gosta do estilo do Presidente da República?

Não votei nele, mas fiquei surpreendido pela positiva. Espero que esta surpresa não se venha a tornar um dia em algo desagradável. Espero que ao primeiro erro da geringonça ele não aproveite a popularidade que tem para fazer cair o governo. Tenho esse receio. Mas em termos de descontração e de contacto com o povo, este é o melhor Presidente da República que já tivemos em democracia.

Melhor que Mário Soares e Jorge Sampaio?

Sim. O Jorge Sampaio foi uma pessoa porreira, mas não tinha a atividade que este homem tem junto do povo.

Reformou-se há um mês. Como tem sido a mudança de vida?

Ainda estou na fase de adaptação. Há pequenas coisas para fazer em casa. Algum exercício físico. E passei a andar muito.