Depois de aquilo que disse, ainda podemos olhar Jeroen Dijsselbloem como socialista?
Trata-se de um socialista muito particular, se é que lhe podemos chamar socialista. Numa era de declínio da coerência interna das ideologias – que me interrogo se será verdadeiramente negativa – é alguém sobretudo alinhado com os interesses do seu país e os interesses do seu país estão sobretudo alinhados com a Alemanha. O que é grave nas suas declarações [aludiu aos países endividados como gastadores de dinheiro em «aguardente e mulheres»] é revelarem a sua compreensão francamente insatisfatória dos problemas da união monetária. Parece achar que tudo isto se reduz a questões de ordem moral.
Em que sentido ‘moral’?
Como se houvesse uma certa doença moral, uma inferioridade moral do sul, que tem de ser castigado. É uma compreensão simplória e inaceitável das dificuldades da Zona Euro.
Ouvimos o presidente da Comissão Europeia [Jean-Claude Juncker] com uma linha mais social-cristã e o ministro das Finanças alemão [Wolfgang Schäuble] com uma linha mais fiscalmente conservadora. Há dois partidos dentro do Partido Popular Europeu?
O que há dentro do PPE é uma linha mais refém da opinião pública nacional, que é o caso de Schäuble na Alemanha. Há uma pressão da opinião pública no Governo que o impede de reconhecer problemas sistémicos na Zona Euro para os quais tem de encontrar soluções equilibradas. Aí, é preciso ter esperança nas eleições alemãs, que podem gerar soluções para resolver o impacto assimétrico da moeda única nas diferentes economias.
De que assimetria estamos a falar como problema?
A Zona Euro não está a funcionar, está a engendrar vencedores e perdedores sistémicos. A leitura da Alemanha, por outro lado, é mais simples: há cumpridores e há incumpridores que têm de ser castigados. No PPE de hoje, é preciso entender que há um conservadorismo profundamente dependente da opinião pública nacional, por um lado, e um conservadorismo europeu fortemente ancorado na democracia-cristã, integracionista, que pretende que os problemas sejam equacionados na sua real dimensão e que as vantagens do euro possam ser repartidas de modo mais equitativo por todos os Estados-membros.
É impossível resolver essa assimetria sem mais integração?
Isto não é uma questão propriamente ideológica. Mais do que exportar automóveis, sapatos, têxteis, aquilo que estamos a exportar hoje é competitividade. Numa moeda que não está em linha com as possibilidades da nossa economia, nós somos exportadores de competitividade. Se já não temos mecanismos monetários para corrigir isso, temos de encontrar forma de resolvê-lo dentro da zona monetária comum: restituir competitividade aos designados países do sul e também que os países do norte reconheçam que o seu superávite – no caso alemão, a rondar os 7% – também é sintomático.
E que solução?
As políticas públicas têm de combater esse desequilíbrio. As políticas de austeridade neste momento prosseguidas no sul – Portugal incluído – só serão bem-sucedidas se os superávites também forem corrigidos. Não se pode é criar uma versão moralista da economia, em que é glorioso ter um superávite de 7% e é sintomático de deficiência moral ter défice. Essa visão é que coloca a União Europeia em causa.
Entre os fundos comunitários e as restrições orçamentais, ainda compensa ser europeísta? Ainda faz sentido dizer que ‘a social-democracia só é possível na União Europeia’?
Faz. O essencial das vantagens de estar na Europa não tem nada a ver com os fundos estruturais. Eles são importantes para acelerar a convergência com a Europa mais desenvolvida e próspera. Mas o essencial para nós é participar num espaço economicamente competitivo, que as empresas descubram outra viabilidade no mercado integrado, é a Europa como fator de modernização. Não estamos na Europa para sermos subsidiados. Os fundos estruturais vêm equilibrar um ponto de partida que é muito diverso, vêm dar uma igualdade de oportunidades perante economias mais sofisticadas.
Não há essa visão de economia de ‘ir pedinchar’?
Temos de saber se estamos a falar com a opinião pública alemã ou com o governo alemão. Relativamente ao governo alemão, a esperança que podemos ter é que este resolva os problemas de modo a termos convergência e se resolvam os problemas da União. Relativamente à opinião pública alemã, é explicar que o seu sucesso económico não se deve exclusivamente às suas admiráveis qualidades nacionais mas a um conjunto de políticas, como a moeda única, que criam condições privilegiadas para as suas empresas e para a sua economia. É evidente que a economia portuguesa e a economia alemã têm diferenças; a alemã é muito mais produtiva, mais eficiente, tudo isso é verdade, mas neste momento concorrem com preços muito mais baixos precisamente por causa do euro. Há que deixar claro: os problemas do sul e as vantagens do norte são duas faces da mesma moeda.
É possível dizer quem beneficia mais?
A França e a Alemanha também vão buscar muito dinheiro aos fundos comunitários, à Política Agrícola Comum, por exemplo. Ainda há regiões da Suécia que estão no fundo da coesão… A teoria de que o norte próspero anda a financiar o sul tem de se desmontar, até porque muitas das dificuldades do sul são consequência de decisões políticas penalizadoras do sul. E o que seria da competitividade do norte sem elas?
Responder ao dualismo entre norte e sul com reuniões entre países do sul é contraproducente ou positivo do ponto de vista político?
Nem é contraproducente nem permitirá grandes êxitos. Acho muito bem que o sul debata dificuldades que não são só de uns nem só de outros, mas de todos. Todos os países devem manter uma relação de diálogo com a Alemanha. Creio que os responsáveis políticos alemães estão cientes de qual tem sido o balanço da moeda única, que estão disponíveis para encontrar soluções que restaurem equidade e equilíbrio à nossa zona monetária comum. Esse, para mim, é o caminho mais útil.
Então qual é o entrave?
O grande bloqueio para essas soluções reside na opinião pública dos países do norte. Mas isso tem de ser a classe política desses países a resolver, a fazer pedagogia, a explicar que gozam de uma prosperidade inaudita e largamente tributária da Zona Euro. É preciso partilhar essa prosperidade porque, ao contrário do que se pensava ao início, esta não é partilhada equitativamente entre os diferentes Estados.
Indo à Grã-Bretanha. A tentação de castigar o Reino Unido por sair da União Europeia de modo a preservar a sua unidade política, é uma tentação racional? Não dar um bom acordo aos ingleses para desmotivar outras possíveis saídas?
A ideia de castigar os ingleses por quererem sair da União é totalmente absurda porque cria a ideia de que os povos não estão na Europa por livre vontade, mas porque os custos de sair seriam incomportáveis. Querer criar dificuldades para punir os ingleses e vacinar a Europa contra futuras secessões seria profundamente negativo. Portugal tem sido sempre contra essa lógica de punição.
Colocar Gibraltar na mesa de negociações não é algo desproporcional ou desnecessário?
Só espíritos simples é que acham duas coisas: que são tão superiores a todos os que lhes precederam que abolem os erros de passado e derrotam a história. Ora, isso não é possível. A história está sempre lá, prolonga-se e prevalece. O presente é só uma continuação dela. Não é possível erradicá-la. A construção europeia afastou a guerra do continente mas se destruirmos a União, mais cedo ou mais tarde, voltaremos à guerra.
Toma-se a paz por garantida?
Claro, é evidente. Acham isto tudo alarmista porque viveram sempre em paz. Mas olhe para o passado. Nos últimos 30/50 anos temos um foco de instabilidade no Médio Oriente, quando nos últimos dois mil anos tínhamos o foco de instabilidade no extremo ocidental do continente asiático – a que nós chamamos: Europa. Era um estado de guerra civil endémico. As pessoas pensam que a História não ajusta contas connosco? Ajusta. E seremos vítimas disso.
E a responsabilidade vai para quem?
Não são os presidentes atuais ou os ministros atuais que vão tomar as grandes decisões. São aqueles que agora ascendem, no meio da revolta, do descontentamento, da frustração.
O euroceticismo é uma causa dos problemas da União ou uma consequência dos erros da União?
Veja de outro ponto de vista: um europeísta português não tem o mesmo poder que um europeísta alemão. A Alemanha vai ter de decidir se quer preservar a construção europeia e se os partidos do mainstream – os sociais-democratas e os democratas-cristãos – estão disponíveis a pagar a fatura eleitoral que é defender a Europa: nunca gozamos tanta paz, tanta prosperidade, tanta cooperação. Vamos deitar isto para o lixo? Em nome de velhas pulsões, de moralismos do norte protestante contra o sul papista?! Se querem incorrer em toda a estupidez, em todo o obscurantismo, que o façam. Mas viverão com a essa responsabilidade.
Além das evidências económicos, por que passamos a vida a falar da Alemanha?
Por que a História lhes concedeu uma centralidade que faz com que as questões que decididas na política interna alemã sejam muito mais determinantes que o decidido na Itália, na Bélgica… Com o afastamento dos ingleses são eles a decidir se querem que haja Europa ou não.
E a Europa a duas velocidade; sim ou não?
Eu percebo que a diplomacia portuguesa mantenha a sua posição de uma Europa a 28. No entanto, se numa época em que nós próprios nos interrogamos se devíamos ter entrado no euro, é preciso reconhecer que a Europa a duas velocidades é aquela que melhor serve a sobrevivência do projeto europeu. Qual é o trunfo político que temos hoje por ter integrado o euro desde a primeira hora?
E estaríamos no chamado primeiro pelotão?
Portugal deve sempre querer pertencer à primeira linha, sem eximir-se de perguntar se os custos a pagar não são desproporcionais. Esta circunstância que estamos a viver na Zona Euro, não só em dificuldades para a permanência, como durante a crise das dívidas soberanas, fez-nos pensar. Se a Europa continuar a objetar soluções que nos possibilitem um futuro no quadro da moeda única, temos de nos interrogar sobre as decisões que tomámos no passado. Estamos no euro porque queremos e porque serve o interesse nacional ou porque não podemos responsavelmente conceber a possibilidade de sair por ser impossível calcular os riscos? Não existem quaisquer mecanismos para uma saída ordenada, ninguém sabe a dimensão das consequências. Será que assim somos verdadeiramente livres?
Preside à comissão de Negócios Estrangeiros. A diplomacia parlamentar é pouco conhecida, mas quão fundamental?
A diplomacia parlamentar é muito importante por uma razão: é que a diplomacia desenvolvida pelas chancelarias é uma diplomacia de Estado, por altos funcionários, por representantes diretos do Estado. A diplomacia parlamentar, assegurada pelos deputados, é diferente. Os deputados não representam diretamente nem o Estado nem o governo, representam o povo. Aquilo que defendem e dizem não vincula o Estado. Gozam de uma liberdade e de uma abertura no diálogo impossíveis para um diplomata. Essa proximidade e essa franqueza são altamente coadjuvantes dos objetivos da diplomacia tradicional.
E por que se fala menos desta diplomacia paralela?
Por que antigamente havia uma dimensão internacional nos partidos diferente da contemporânea. A Internacional Socialista hoje é uma insignificância, mas há trinta anos era uma entidade poderosíssima. A este propósito, relembro uma história do Dr. Mário Soares: o candidato trabalhista ao governo inglês, Neil Kinnock, anunciou na altura que se ganhasse retiraria os mísseis estratégicos de médio alcance por consideração à linha pacifista. Mário Soares disse-lhe: ‘Se esse é o teu ponto de vista só me resta esperar que percas as eleições’. Soares sabia que os pacifistas estavam todos de um lado e os mísseis todos do outro; entre eles o Muro de Berlim. Achava a desnuclearização uma ingenuidade geoestratégica, muito fruto do seu combate político em Portugal. Isto passou-se na Internacional Socialista.
E brevemente no plano interno, de Governo. Disse esperar que a lei para a mudança de sexo estivesse ‘mal redigida’. Porquê?
Porque me parece inconcebível que responsabilizemos decisões dessa matéria em menores. Abaixo dos 18 anos, não deveria ser possível. Veja os problemas de identidade e desenvolvimento da adolescência. Tudo isso. Não se pode permitir que um menor tome decisões dessa gravidade. Quando o Estado consente essa possibilidade está a transferir para as famílias uma responsabilidade que é sua. Faz parte de um folclore, de uma sociedade em estagnação social e económica que precisa de criar narrativas que simulem uma progressão de futuro. Mas o futuro não é isso.