Era uma vez um escritor que, caído nesta língua, se lhe interessou pelo couro: catava-lhe os piolhos, as pulgas atrás da orelha não lhe escapavam, tudo o que ferrasse zonas sensíveis, desse comichão nas ideias, tomava para si, fazia coleção. Ia pelos bairros operários da “última flor do Lácio, inculta e bela”, onde a mão-de-obra se vinga da fadiga e dos bolores da existência traficando lâminas na expressão, achados desses que vão fazendo a outra escola. Encheu-se do tal “ouro nativo” que reluz nas articulações das frases que se enchem de alma, os dentes que cintilam indo de boca em boca como um tesouro de piratas. Era assim até há dias, ou parece, e serve para testemunhá-lo o fulgor garimpeiro que persiste vivo nas páginas de Alface.
Tinha pegado na adolescência este nome, e se servia de alcunha entre os amigos, mesmo que não lhe emprestasse ares no Reino que faz ligação, por mais do que um lado, ao quinto dos infernos, havia de ficar para a vidinha literária que cá se faz. E João Alcinha da Silva pagou o preço de não se pôr em sentido, não formar na linha como os outros meninos. Nesse aspecto como noutros, ele sempre fez mais turma com os rapazes.
Se lhe exigissem a continência era mais certo que a coisa enflorasse num manguito. De resto, mesmo quando cá dentro lhe buscaram parceiros na gandaia literária, outros que tenham sabido entrar pela literatura como se saíssem, capazes de uma erudição bandida, de um estilo que parece uma extensão da pontaria com tanto uso do recreio às ruas, o jeito que vai da pedra aos vários tamanhos da bola, quando se pensa nesses termos acabamos a falar numa equipa de futebol de cinco, talvez sete. Entre vivos e mortos ainda estamos para fazer um onze. Contemporâneos, falou-se no Mário-Henrique Leiria, Alexandre O’Neill, Assis Pacheco, e também o outro Pacheco, o Luiz. Assim já se pode dizer: “Cuidado com os Rapazes”.
É este o título que nos traz. Um dos dois livros de contos de Alface, com uma primeira edição em 1982, na Assírio & Alvim, que teve outra no Círculo de Leitores, e agora é a pedra que assinala o aparecimento de uma nova editora, a Maldoror. Já anunciado está também “O Tacão de Ferro”, de Jack London, o que de partida nos diz que é uma aposta que vem para se meter em cuidados. A Luís Henriques foi entregue a capa e o grafismo do livro, e consegue-se assim o que de melhor se pode pretender de uma reedição de um autor desaparecido, dar-lhe o mais justo corpo, aquele peso certo, a letra, o espaço, a capa. Para quem tinha lido em edições anteriores, isso às vezes basta para dar a sensação que o autor veio retocá-lo, aprimorar o que tinha escrito antes. É o que acontece.
Como tinha já referido Nuno Costa Santos num excelente texto que lhe dedicou nas páginas da revista “Ler”, “Alface, a edições revistas e aumentadas, preferia edições revistas e diminuídas”. Os contos que compõem este volume dão a sensação de ter sido varejados sucessivas vezes, para que não fique lá nada que não lute pelo seu lugar. Há um orgulho naquelas frases, não apenas o de sobreviventes mas de indispensáveis. Pressente-se um rigor de ouvido treinado, de quem passou a limpo estas coisas no café, sabendo que a audiência tão facilmente adormece ou dá os olhos ao televisor e já era. Assim, as suas estórias foram curtidas, são-nos dadas e devem muito a esse génio oral das tascas, que não diz só como gesticula, modula a voz, sabe engrossá-la e fazer finezas, circular de umas personagens para outras, pôr a bobine no projector e baixar as luzes.
Há uma falsa secura em frases cheiinhas de juízo, que nos tramam, produzem uma tensão tal que, depois, com um pormenor espreitando, nos deixam sozinhos na comoção. Contos burilados para se nos prenderem como ecos. Uma antologia de um quotidiano que se atraiçoa e ganha aspectos fantásticos. O conto “Mirnis” é uma proeza como não me lembro de muitas nesta língua. E com uma economia! Não se desprega os olhos, não há uma cena encalhada só para fazer o gosto aos cinéfilos – perdoem, aos literatos.
Alface deixou claras as suas prioridades se pegava na caneta para contar uma coisa a alguém que não estava ali no momento. “A escrita tem de derrubar as pessoas do cavalo. Do cavalo do quotidianozinho, do cavalo de quem pensa já ter lido toda a grande literatura, desses cavalos”. E nós estamos todos cansados de saber que há uns grandes escritores, os que ouvem vozes, que têm de escrever porque parece que estão a receber ditados. Vai-se lá saber, talvez seja Deus a querer também confrontar-se com a página em branco.
Para Alface não era tanto a grandeza, as grandes pirâmides literárias erguidas por escravos. Interessava-lhe acima de tudo “uma escrita com dinamite dentro”. Nesse capítulo estaria com Raymond Chandler, que disse: “Leio constantemente os autores dizerem que jamais esperam pela inspiração; o que fazem é sentarem-se nos seus escritórios todas as manhãs às oito, faça chuva ou sol, com os restos de uma bebedeira, um braço quebrado, ou o que seja, e vomitam a sua pequena quota. Não importa quão em branco estejam as suas mentes ou quão espremidos os seus cérebros, nada de inspiração absurda com eles. A eles entrego minha admiração e meu cuidado de evitar os seus livros.”
Também Alface recusava uma literatura que se impõe. “Lavo os dentes, tomo banho, como e durmo todos os dias, mas só escrevo e leio quando estou para aí virado. A literatura não me é uma canga, tem de me apetecer, tem de me dar prazer e, no meu caso, preciso de tempo para repensar o que fazer a seguir, para ser surpreendido; tenho de duvidar muito de mim, pôr em causa a minha capacidade de escrever e, superando esses impasses, superar-me e atirar-me à bendita página branca”.
“Cuidado com os Rapazes” encerra com uma série de narrativas breves, figuras e lugares, exercícios vigorosos, em que se ensaiam tiros à queima-roupa, mas é nos contos que, além da prosa enxuta, do seu coloquialismo, que é um snobismo arruaceiro, é aqui que encontramos o recorte que nos faz beber estas estórias como se nos adiantassem experiências de vida. Aqui é que estas páginas acertam uns tabefes naqueles que concebem os tantâlicos planos nacionais de leitura. Alface tinha claro que não há incenso bastante que possa afastar a sensação de castigo que fica de forçar literatura pela goela de alguém. “Se os jovens forem obrigados, em casa ou na escola, a ler textos que os não estimulem, que os queiram colonizar de bons sentimentos e acções pias, lá vai mais um possível leitor por água abaixo”.
Este é um dos aspectos destacados por Teresa Carvalho no prefácio deste livro e que marca bem a diferença de atitude que faz de Alface um caso desconcertante entre nós. Porque à literatura ainda muitos a usam para as lições de etiqueta mental, os bons modos à mesa e até debaixo dela, para levantar o saldo da conta na caixa geral da moralidadezinha. Se Álvaro de Campos nunca conheceu ninguém que tivesse levado porrada, podemos acrescentar que nem nós conhecemos um autor nesta língua que se tenha assumido como um bom de um crápula. Alguém que tenha desafiado a narrativa do bem a partir da mais bela homenagem que lhe foi feita: o mal. “A literatura, para Alface, era golpe de audácia, sopro de radical liberdade, não um concurso de beleza moral. Com este livro, espécie de rosário de crueldades sorridentemente desfiadas, morada ampla do pecado”.
“Cuidado com os Rapazes” não vai ajudar velhinhas a atravessar seja o que for, não é aqui que as humanidades vão ser salvas, não é um vaso grego, não tem grande coisa a contrariar a Tucídides ou Xenofonte em relação aos seus relatos sobre a Guerra do Peloponeso, não é também um livro para se dar aos miúdos nas escolas, agora, se me disserem que um puto se baldou à aula de português para ficar a ler este livro, isso já faz sentido. Como faz sentido acreditar que terá aprendido muito mais.