Portugal mal se permitiu o registo de uma memória íntima da sua história. Ao longo dos séculos, um punhado de geniais cronistas, talhando a lira da madeira do tédio, dedicaram-lhe páginas majestosas quando foi preciso dar conta do que faziam os portugueses em nome da Coroa mundo fora. Mesmo das figuras que qualquer manual de História não deixará que se esqueçam, vingam apenas traços caricaturais. País de uma gente que se cala mesmo no que diz, gente que, ou o deixou, ou parece ter-se enquistado nele.
Desenhado num rude contorno, aquilo que as fronteiras envolvem torna-se nebuloso, uma fantasmagoria. O registo memorialista, a biografia, mesmo a crónica ou o diário, têm fraca tradição entre nós. A ficção é baça no que revela do passado, e coube por isso aos poetas compensar a fraca memória que o país tem de si, derramando-lhe uns mitos maiores e menores em cima. Uns sentimentos algo indecifráveis, como a saudade, essa rede onde tudo cabe e a que tudo escapa.
Raul Brandão tornou-se um grande intérprete da vida íntima e da trágica condição portuguesa: «A vida antiga tinha raízes, talvez a vida futura as venha a ter. A nossa época é horrível porque já não cremos – e não cremos ainda. O passado desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós sem tecto, entre ruínas à espera». A sua escrita espelha, a todo o momento, essa crise e a sua linguagem torna-se o próprio teatro de uma representação angustiada da vida. Numa estética que se acerca espantosamente da dúvida predadora do próprio homem, os sentidos agarram-se ao mundo fazendo-o em fragmentos, tentando não ser arrastados, devorados por essa consciência que se joga entre o desejo de grandeza e o desespero. Este é um escritor que coloca a linguagem na vertigem de um raciocínio convulsivo e doloroso. Dela ficam unhas, cabelos, os restos tão mortais e os sentimentos com que os homens se agarram à vida, com que alguns vincam o seu carácter no espaço que os rodeia.
No ano em que se assinalam os 150 do seu nascimento e o centenário da publicação da sua mais emblemática obra, Húmus, Brandão vê o reconhecimento do seu génio projectá-lo definitivamente para o estatuto de clássico da nossa literatura. Nas comemorações das efemérides, na multiplicação de iniciativas, seja através de congressos, festivais e outras sessões públicas, ou pelo impulso editorial na disponibilização da sua obra, tem-se assistido a um invulgaríssimo pacto entre as vontades de muitas pessoas e instituições para que 2017 seja o ano em que o autor é resgatado de uma certa obscuridade ou esquecimento. Como é óbvio nada, no que toca ao reconhecimento cultural, é para sempre, mas pode hoje dizer-se que ninguém com o mínimo interesse pela literatura portuguesa terá ficado alheio a estes esforços.
Guimarães, a cidade que o escritor escolheu para viver, soube honrá-lo, e tornou-se o centro irradiador do ‘Ano Raul Brandão’. Além da intensa programação que celebrou a sua obra nos diversos géneros, assume relevo o lançamento de um site que procurará «agregar informação sobre o autor» – www.raulbrandao.pt – e o apoio a uma série de edições, merecendo destaque as Memórias (Quetzal, 2017), reunindo os três volumes em que estas foram originalmente publicadas.
Não se tratando de uma autobiografia literária, estas memórias inscrevem-se num mais vasto e ambicioso programa, num compromisso entre o testemunho e a crónica, com a análise informada do jornalista, e a fulgurante meditação do escritor. Assim, ao valor documental alia-se o alcance dos juízos formulados por Brandão, não apenas quando relata episódios mas também quando revela aspectos mais e menos íntimos, que aproveitam o privilégio da sua convivência com figuras marcantes de há um século, sobretudo os escritores que lhe mereceram admiração, mas também essas figuras raríssimas que são a matéria inspiradora dos seus livros.
Na sua última edição, até o Jornal de Letras soube sair da irrelevância que de alguns anos a esta parte lhe é característica, abrindo as suas páginas ao contributo de alguns dos maiores e mais devotados especialistas na obra brandoniana, como Maria João Reynaud e Vitor Viçoso. Este assina um texto imprescindível, traçando de forma admirável uma perspectiva sobre toda a obra e uma análise ao mesmo tempo sintética, clara e com grande profundidade. É dele que nos socorremos para situar o período do qual estas Memórias nos chegam, bem como a atitude que definiu a sua identidade estética: «De facto, espectador comprometido agonicamente com o espectáculo do mundo (historicamente marcado, entre nós, pelo trágico estertor da monarquia constitucional e a ascensão e queda da primeira República, e, no plano internacional, pela I Guerra Mundial ou pela revolução bolchevique de 1917 – um trajecto convulso que reinventaria fragmentariamente nas suas Memórias), a sua prática estética é uma peculiar convergência do imaginário decadentista finissecular e de um expressionismo nocturno, alternando com um lirismo telúrico de configuração mística».
Na escrita destas memórias, Brandão deixa transparecer uma noção perfeita dos factos e impressões que permanecem relevantes para além das circunstâncias do seu tempo, e assim estas são, no fim de contas, um poderoso ensaio sobre o que existe de intemporal nos acontecimentos, nas coisas e nos seres, e sobre o drama nuclear à existência. Por isso, esta é uma peça fundamental da sua obra, umas verdadeiras memórias póstumas de um génio que aprendeu aquela lição que tinha já deixado Camões. Ou seja, que a razão por que não morre um canto é porque sabe morrer com cada época nova que passa. E hoje pode constatar-se como Raul Brandão soube viver a sua vida indo além dela, trabalhando para a posteridade. Logo no prefácio ao volume I das Memórias, ele escreve: «Não sei – nem me importo – se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu ser agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectáculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso me enche: levo-o para a cova, para remoer durante séculos e séculos, até ao juízo final. Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas perdidas…».
Estas são memórias que se dedicam a salvar os tais aspectos que fogem à caricatura. Seja nas páginas em que deixa um digníssimo retrato de Guerra Junqueiro, seja de um personagem qualquer que, com a sua candeia, lançou luz neste espírito tão perturbado pelas trevas, as figuras que povoam estas memórias são ideais para a melhor ficção, são as colunas que sustentam o sonho contra a dor. E Brandão reconhece como um e outro são essenciais: «O homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte. De dor também». Elevando a literatura a uma arte ressuscitante, que impede que se apague o que há de mais íntimo e verdadeiro nas pessoas, é natural por isso a dedicatória destas memórias «Aos Mortos».